04 setembro 2006

Resposta ao ex-sociólogo e ex-presidente, que nunca deveria ter sido


República da malandragem - Fernando Henrique Cardoso

Há momentos em que é melhor apelar para a imaginação para entender a política. Nesses momentos, a literatura ajuda a explicar os vaivéns do cotidiano mais do que muita pesquisa minuciosa ou laivo iluminado de interpretação. Como é possível que, diante de tanto descalabro moral, as pessoas votem em consolidar uma situação governamental cujos pecados são expostos sem remorso e até mesmo com júbilo pelos que se consideram vitoriosos de antemão? Não é o próprio presidente quem diz que, afinal, tudo no mundo da política é mesmo sujeira e, portanto, de pouco valem as distinções entre bons e maus? Não foi de longe, de Paris, que, logo no início das denúncias de corrupção, o presidente, instruído por advogados, disse que todos fazem caixa 2, "coisa normal", misturando assim o crime de corrupção dos mensaleiros que receberam dinheiro vindo do Tesouro, por intermédio de cumplicidades administrativas e políticas, para comprar votos no Congresso com o delito dos candidatos que não declaram recursos provindos do caixa 2 das empresas?

Pobre sociólogo desiludido e desacreditado, mais pobre ainda os jornais que lhe emprestam ou vendem seus espaços para ecoar uma ira descabida e preconceituosa, contra o voto popular que o baniu da vida pública, por sua passagem desastrosa, delituosa e nefasta.

Apelar para a imaginação é uma maneira mais fácil de distorcer os fatos que não se distorce com dados e atos.

Por que estranhar que alguns artistas ou intelectuais tenham introjetado tudo isso e, à guisa de esconderem a própria falência moral (e também intelectual), proclamem que a eficácia na obtenção dos resultados suplanta a norma moral, deixando Maquiavel corado quando se pretende que foi dele que retiraram tal barbaridade? No fundo, em vez de pensamento, expressam apenas conformismo, acomodação. Se as coisas melhoraram para o povo, justificam, por que deveriam incomodar-se com os meios que permitiram essa suposta melhoria? Transformam assim o inocente povo em culpado pela descaracterização moral deles, assim como o presidente já tornara "o sistema" culpado pelas transgressões, pelos "erros" dos "companheiros".

Somente apelando para a imaginação ou para alem da imaginação, é possível vê-lo invocar falência moral e intelectual de quem quer que seja. Muito mais corado ficaria Maquiavel ao ser usado em sua fragilíssima defesa. Eu sou povo e como tal nego-lhe o direito de assumir a minha defesa principalmente com os argumentos usados na sua.

Há muitos anos me refiro a alguns dos personagens principais da cena política dominante no Brasil e seus aduladores dizendo que são macunaímicos. Entretanto, servindo-me do conhecido personagem de Mário de Andrade, no fundo estarei quase perdoando os desvios de conduta. Macunaíma é o "herói sem-caráter". Mas, nesse caso, a palavra caráter quase assume seu sentido em espanhol: sem característica, que se adapta facilmente a situações variáveis, mais do que de mau-caráter. Há a ausência do bem e do mal, de ambos, não uma distinção frouxa entre eles. Trata-se, portanto, de uma inclinação ao oportunismo, sem necessariamente implicar transgressão ou mesmo um juízo moral. Bem pensando, talvez fosse melhor buscar nas Memórias de um sargento de milícias recursos para entender a "moral" de alguns entre nossos governantes e de certos intelectuais que os enaltecem, compreendendo-os em um contexto que, sem o negar, ultrapassa o comportamento individual sem-caráter de Macunaíma.

Caráter sm 1. Forma que se dá à letra manuscrita ou ao tipo de imprensa. 2. Caractere. 3. Aquilo que distingue um ser ou uma coisa, e que lhe é próprio, peculiar, ou lhe foi atribuído. 4. O conjunto dos traços particulares, o modo de ser do indivíduo ou de um grupo; índole, natureza, temperamento. 5. Cunho ou marca. 6. O conjunto das qualidades, boas ou más, de um indivíduo, e que lhes determina a conduta e a concepção moral. 7. Expressão ajustada; propriedade. 8. Honradez, retidão.

Com base no escrito acima senhor sociólogo, onde o senhor incluiria um cidadão que se fez politicamente como homem socialista, exilado político, que ao assumir a presidência de um país, assume uma postura “neo-liberal”, doando os bens públicos, desmontando a máquina pública administrativa, engavetando CPIs, assume uma política de planejamento e econômica irresponsáveis, e conclui oito anos de gestão expurgado pelo voto popular de quem agora se intitula o defensor?

Nas Memórias, o bem e o mal nunca aparecem em sua inteireza, há um jogo entre eles, um sistema no qual suas referências estão presentes, nota Antonio Candido numa magistral interpretação da obra de Manoel Antônio de Almeida [1]. Admite-se certo abrandamento entre norma e conduta, dotando os personagens de "flexibilidade moral", mas não se elimina a norma. A ordem (o respeito à lei) é um vago princípio abstrato; a liberdade, um capricho. Passar de um universo ao outro (da norma à transgressão, da ordem à desordem) não impõe culpa: "As pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura". Noutro trecho: "O remorso não existe, pois a avaliação das ações é feita segundo a sua eficácia". Disso tudo resulta que o herói do livro, Leonardo Filho, vive em um universo cultural em que há a aceitação do homem "como ele é, um misto de cinismo e bonomia". Os personagens se movem em um balé entre o lícito e o ilícito, num ambiente permeado por uma tolerância corrosiva que aceita como válida a realidade tanto para lá como para cá da norma e da lei. Forma-se uma dialética da malandragem.

Realmente senhor sociólogo, o bem e mal nunca aparecem em sua inteireza e foi no jogo entre eles que se fizeram as privatizações, os socorros aos bancos com o PROER, licitações para o SIVAM, Projeto para reeleição que agora combates, tentativa de entrega de Alcântara, paro por aqui por falta de espaço.

Pode haver descrição melhor para nossa realidade política atual? Não se trata de mero oportunismo no caso dos personagens a que me refiro, mas de rechaço aos aspectos da cultura ocidental que, transposta para as Américas, encontrou acolhida nos Estados Unidos onde "uma presença constritora da lei, religiosa e civil, plasmou os grupos e os indivíduos, delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado", diz Antonio Candido. Em nossas plagas, abaixo do Equador, onde não haveria pecado, a lei é frouxa para constranger, a impunidade impera. E durma-se com um barulho desses.

Mais uma vez senhor sociólogo, a sua sociologia não foi aprimorada para nossa sociedade conforme demonstra acima. Se a presença constritora da lei, religiosa e civil plasmasse os grupos e indivíduos, delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado, se arraigasse em nossas plagas, onde o senhor acredita que estaria dormindo hoje com ou sem barulho?

Mas essa é precisamente a questão: estamos assistindo ao desdobramento da marcha da insensatez, recuando no tempo, para mergulharmos no que há de pior do "homem cordial" tão criticado por Sérgio Buarque como oposto à democracia, na troca tradicional de favores, na concepção de que "aos amigos tudo, aos inimigos a lei", na confusão entre público e privado e no patrimonialismo moderno que resulta em sanguessugas e mensaleiros. Isso tudo sob as vistas cínicas e prenhes de bonomia do Grande Padrinho, que, acima do bem e do mal, preside não o Brasil, mas a "República da malandragem". Essa, para parafrasear os desiludidos com a República de 1889, não é a República de meus sonhos, nem a da maioria dos brasileiros.

Senhor sociólogo, tenho observado que adoras usar frases copiadas de outros autores, pare com isto, os anos de sociologia já deveriam permiti-lhe, suas próprias argumentações. Finalmente, puxe por sua memória, não imaginação, relembre honestamente de seus oito anos na presidência, e com certeza terá um outro conceito da “República da malandragem”

[1] Antonio Candido, "A dialética da malandragem", in: O discurso e a cidade, São Paulo, Duas Cidades, 3ª edição. As citações entre aspas são desse ensaio

Fernando Henrique Cardoso
Sociólogo, foi presidente da República


Paulo Nolasco de Andrade, Gestor empresarial, continua sendo um cidadão que luta por um país mais justo e digno.

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