29 maio 2008

Crise de alimentos e crise de modelo


O mundo vem sendo sacudido por uma conjuntura crítica em cujo centro se encontra o principal determinante do direito elementar à vida que é o acesso aos alimentos, fortemente afetado pela alta dos preços de alimentos essenciais como arroz, milho, soja, trigo e lácteos. Essa alta também desestabiliza o abastecimento alimentar em quase todos os países do mundo. No Brasil, o Dieese registrou aumento no custo da cesta básica em 16 capitais, chegando a 29,79% em Belo Horizonte nos últimos 12 meses; de janeiro a abril deste ano, ela já atingiu 19,25% em Fortaleza. No mesmo período, em São Paulo, a Fipe apurou inflação de 4,51% e aumento de 12% nos preços dos alimentos, que chegou a 62,8% no óleo de soja.
Quatro fatores se destacam entre as causas dessa alta e revelam uma crise mais profunda que o mero desajuste entre oferta e demanda. Primeiro, a contínua elevação da demanda por alimentos em grandes países emergentes (China, Índia e Brasil, entre outros) fruto do incremento no poder de compra dos setores de menor renda. A isso se soma a destinação de grãos básicos como o milho e a soja, além de outros bens alimentares, para a produção de agrocombustíveis; só os Estados Unidos utilizam cerca de 10% da produção mundial de milho para a produção de etanol. Essa relação, no Brasil, não é direta e seus eventuais efeitos se darão no médio prazo.
O segundo fator é a forte elevação do preço do petróleo, encarecendo os custos da produção agrícola e do transporte. A valorização do real frente ao dólar e a estabilidade do preço do óleo diesel, até há pouco mantida pela Petrobrás, evitaram impacto maior no Brasil. Terceiro, agravou esse quadro a ocorrência de quebras de safra em países que contam para a oferta internacional, como a China e a Austrália, além de perdas na América Latina e Caribe e na Ásia. Por último, somou-se a especulação em bolsa com produtos alimentares tornados commodities (como a soja, milho e trigo). Demanda aquecida, baixo nível de estoques e governos desarmados de instrumentos reguladores oferecem excelentes perspectivas de ganho especulativo.
O Brasil encontra-se plenamente integrado no sistema alimentar globalizado. É um grande exportador em permanente busca de novos mercados, característica que o coloca como beneficiário dessa conjuntura segundo uma ótica mercantil estrita. Aqui se expandiu o padrão da grande produção mecanizada e intensiva em químicos e a grande agroindústria, com o modelo de consumo correspondente. Daí as propostas de enfrentar a presente conjuntura com "mais do mesmo", isto é, mais produção em grande escala, tecnologia e comércio internacional. É uma resposta possível que beneficia alguns, porém, que não enfrenta a alta dos preços e, muito menos, a crise de modelo subjacente. Estão em questão tanto o aprofundamento do atual padrão de produção por seus impactos sócio-ambientais, quanto uma segurança alimentar global assentada na premissa falsa do livre-comércio.
Aposta brasileira no comércio internacional se revelou nada livre e pouco confiável para segurança alimentar
Sucessivos governos brasileiros têm reafirmado, desde final dos anos 1980, a opção por liberalizar o comércio e desregulamentar mercados. Reduziram-se tarifas de importação, foi quase eliminado o crédito agrícola subsidiado e, principalmente, desmontou-se a maioria dos instrumentos de uma política de abastecimento (preços, estoques e equipamentos públicos no atacado e varejo). No entanto, a aposta no comércio internacional se mostrou, reiteradas vezes como agora, nada livre e pouco confiável como fonte de segurança alimentar. Predominam, na produção e comércio mundiais e nos acordos internacionais, as políticas adotadas pela União Européia e Estados Unidos, bem como o enorme poder de cinco ou seis grandes corporações multinacionais e, no nosso caso, os interesses de um número reduzido de exportadores. O cerceamento ao uso de instrumentos de políticas domésticas é aceito em troca da promessa de avançar na liberação do comércio internacional que não é apenas improvável, como ilusória.
O enfrentamento da atual conjuntura exige instrumentos de efeito imediato em conjunto com a revisão de estratégias de médio e longo prazo. Em termos imediatos, destacaria o monitoramento dos fluxos comerciais e a recomposição gradativa de estoques de garantia, acompanhadas do apoio às ações de abastecimento nas esferas estadual e municipal. Pelo lado da oferta, trata-se de fortalecer o apoio à agricultura familiar cuja expansão recente contribuiu para amenizar os efeitos da crise, como ficou evidente no leite e derivados. Parte da elevação dos preços dos alimentos é uma recuperação dos preços agrícolas após longo período de queda, mas nada assegura que ela beneficiará os milhões de agricultores familiares entre os quais se registram os mais elevados índices de pobreza no Brasil.
Um dado grave e pouco destacado é o despreparo político-institucional da grande maioria dos países para enfrentar a presente crise. Devemos assistir à reconstrução de um padrão de regulação nacional no campo alimentar entre os países com capacidade para tanto. Embora pouco provável, seria importante se essa conjuntura estimulasse a revisão do tipo de multilateralismo e de regulação comercial patrocinados pela OMC. Requerem-se formas de cooperação e apoio técnico aos países mais fragilizados para além da doação de víveres.
Deduz-se do anterior ser inevitável implementar políticas nacionais de abastecimento. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional propôs ao governo federal em 2005, uma política de abastecimento orientada pelos enfoques da soberania e da segurança alimentar e nutricional, e da promoção do direito humano à alimentação. Seu objetivo seria ampliar o acesso a alimentos de qualidade, promover uma alimentação adequada e saudável e a diversidade de hábitos alimentares, ao mesmo tempo em que valorizaria a agricultura familiar de base agroecológica e os pequenos empreendimentos urbanos.
Como dito acima, várias respostas são possíveis a atual crise, menos a de ignorar sua gravidade e profundidade. As responsabilidades internas e internacionais do Brasil, com a notoriedade adquirida nesse campo, requerem mais do que um comportamento de mercador interessado nos ganhos comerciais oferecidos pela conjuntura econômica.

Por Renato S. Maluf
Renato S. Maluf é professor do CPDA/UFRRJ e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Artigo publicado no Valor Econômico

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