O escândalo dos cartões
O governo Lula tem o portal de gastos mais detalhado e transparente de todos os tempos. Mas parte da mídia tenta passar a idéia de que o governo é o mais leniente e corrupto de todos os tempos. Uma inversão espetacular do sentido dos fatos
Por Bernardo Kucinski(*)
Dos muitos abusos com cartões corporativos denunciados pela imprensa, o mais significativo foi a redecoração do apartamento do reitor da Universidade de Brasília, com R$ 470 mil de um fundo de apoio a pesquisas. Daria para comprar um apartamento de três quartos em Copacabana, lembrou na Folha o poeta Ferreira Gullar. O reitor pagou R$ 859 por um saca-rolhas, R$ 7.100 por um fogão. “Quantas bocas terá esse fogão?”, ironizou o poeta. Um fundo de pesquisa nunca deveria ser usado para reformar um apartamento. Ao defender esses gastos, o reitor personificou o que os sociólogos chamam de “elite patrimonialista”, que se apropria do patrimônio público como se fosse particular.
Mas a maioria dos abusos com cartões corporativos denunciados pela mídia resultou de esquecimentos, pequenos enganos ou deslizes patrimonialistas isolados, como a reforma de uma mesa de bilhar de uso recreativo de funcionários. Não foram gastos sistemáticos, como os do reitor. Foram exceção, não regra. Ocorreu uma espécie de corrupção das denúncias contra corrupção. O exemplo mais gritante foi o da revista Veja, que falseou estatísticas para convencer o leitor de que no governo Lula instalou-se uma farra com cartões corporativos.
Veja montou um gigantesco gráfico com as curvas dos saques partindo quase do zero no mandato de Fernando Henrique e subindo, vertiginosamente, para chegar a R$ 58 milhões no governo Lula. No ponto baixo da curva colocou uma foto de FHC e, no seu pico, uma de Lula, destacando: “Aumento no total de saques no governo lula: 2.000%”.
A verdade é que os gastos totais por servidores caíram de R$ 233 milhões no último ano do governo de Fernando Henrique para R$ 177 milhões no ano passado. O que o governo Lula fez foi acelerar o processo de substituição das antigas contas tipo B, que não são transparentes e podem ser fraudadas, por cartões corporativos. Estes emitem automaticamente extrato detalhado dos gastos e são à prova de fraude. Além disso, Lula reduziu em escala maior ainda os pagamentos com cheques e criou o Portal da Transparência, que permite a todos os brasileiros detectar todo e qualquer gasto com fundos de provisão do governo. Confira você mesmo em www.portaldatransparencia.gov.br.
Enquanto isso, o governo de José Serra, em São Paulo, dobrou os gastos com cartões corporativos, totalizando R$ 108 milhões em 2007, e sem nenhum portal de transparência. Nem por isso foi denunciado por Veja – um caso claro de manipulação da informação. Essas manipulações conseguiram produzir um efeito que em teoria jornalística se chama “inversão de sentidos”. Tanto assim que, na pesquisa Sensus fechada naqueles dias, 83,2% dos consultados disseram ser contra o uso de cartões corporativos pelo governo.
Lula reconheceu a importância de algumas das denúncias, até agradeceu aos jornalistas, mas elogiou os cartões e mandou aprimorar os controles. O principal abuso, apontado pelo estudioso do assunto, Marcos Fernandes, numa das poucas reportagens sensatas da Folha, são os saques em dinheiro. Ele disse que os pagamentos com cartões são o que há de mais transparente e moderno na administração pública e em empresas privadas, mas os saques em dinheiro podem gerar desvios. Ocorre que quase metade do total em dinheiro foram saques do IBGE e outro terço da agência de inteligência, a Abin. O resto dos ministérios sacou pouquíssimo em dinheiro. Os da Abin foram justificados pela intensificação das operações e reforço exigido pela segurança do Pan. A Folha assanhou-se com os saques do IBGE e pautou seu repórter para descobrir um suposto mundo de abusos. Mas os dirigentes do IBGE deixaram claro que foram gastos indispensáveis à realização de dois censos, o agropecuário e o de contagem de população em pequenos municípios, envolvendo deslocamentos de 2 mil recenseadores em locais que só aceitam pagamentos em dinheiro. Os gastos foram auditados e conferidos, um por um.
Mesmo assim, a Folha publicou a pauta furada em tom de denúncia. O jornal tem insistido em publicar denúncias vazias ou ilações como se fossem fatos. Para se proteger, publica ao lado uma pequena retranca com a versão do “outro lado”. Marcelo Coelho, da própria Folha, chamou essa obstinação de “macarthismo das miudezas”. Foram vazias as denúncias que tentaram ligar tesoureiros do PT ao uso de cartões corporativos ou funcionários ao recebimento indevido de diárias de viagem. A revista Época deu as informações corretas e bem contextualizadas. Mostrou que 99% dos cartões são usados pelo baixo escalão do governo. É uma ferramenta de trabalho dos operadores de programas e chefes de escritórios regionais, e não uma mordomia da elite dirigente. São cerca de 13 mil funcionários, a maioria de carreira, encarregados de pagar compras e suprimentos. Podem ser considerados de um “estamento”, da burocracia, por terem poderes especiais. Mas não de elite patrimonialista.
Quase todas as reportagens omitiram que depois do gasto o servidor precisa apresentar recibos, notas fiscais e a justificativa da despesa, seja qual for a forma de pagamento, com cartão ou com cheques de contas tipo B. Outro truque foi omitir que o próprio governo fiscaliza os gastos, por amostragem e outros métodos. Uma das reportagens do Estadão escreveu que “desde 2003, primeiro ano do governo Lula, a Controladoria-Geral da União assistiu a um crescimento, ano a ano, de 65,5% no número de punições administrativas”. Notem a inversão dos sujeitos, como se CGU fosse o mocinho e o governo o bandido. Ora, a CGU é o governo, é o seu principal instrumento para coibir abusos. E a CGU de Lula tem sido especialmente severa, determinando 60% mais demissões e outras punições de servidores, por abusos, do que o governo anterior. Entidades de servidores públicos já a acusaram de perseguição.
A mídia também não considerou a ordem de importância dos valores. Chama-se a esse mecanismo de “não hierarquização dos fatos”. Como disse em editorial a revista Época, que não aderiu à manipulação, o gasto com cartões corporativos “representa uma fração pequena de todos os gastos do governo. E o fato de eles deixarem registros públicos que depois podem ser rastreados também deve ser louvado. O ponto a criticar, evidentemente, não é o uso de cartões corporativos, por funcionários, mas seu abuso”.
Fui conferir o Portal da Transparência. E descobri que o total de gastos com cartões corporativos é menos do que um décimo de milésimo da quantia gasta pelo governo. Enquanto isso, os juros e a rolagem da dívida pública consumiram em 2007 quase 60% do total. O verdadeiro escândalo revelado pelo portal é o modelo econômico do governo, que gasta em juros mais da metade de tudo o que arrecada. Mas isso a grande mídia faz questão de não ver.
A pergunta que se faz é: por que tanta manipulação? É a retomada da agenda que tenta desqualificar o governo no plano moral, já que a grande imprensa aprova e aplaude as políticas macroeconômicas, embora com uma ou outra restrição isolada. A insistência em citar o nome de Lula e seus familiares nas manchetes revela mais claramente a intenção de devassar a intimidade do presidente e, com isso, despojá-lo de toda dignidade.
Por Bernardo Kucinski(*)
Dos muitos abusos com cartões corporativos denunciados pela imprensa, o mais significativo foi a redecoração do apartamento do reitor da Universidade de Brasília, com R$ 470 mil de um fundo de apoio a pesquisas. Daria para comprar um apartamento de três quartos em Copacabana, lembrou na Folha o poeta Ferreira Gullar. O reitor pagou R$ 859 por um saca-rolhas, R$ 7.100 por um fogão. “Quantas bocas terá esse fogão?”, ironizou o poeta. Um fundo de pesquisa nunca deveria ser usado para reformar um apartamento. Ao defender esses gastos, o reitor personificou o que os sociólogos chamam de “elite patrimonialista”, que se apropria do patrimônio público como se fosse particular.
Mas a maioria dos abusos com cartões corporativos denunciados pela mídia resultou de esquecimentos, pequenos enganos ou deslizes patrimonialistas isolados, como a reforma de uma mesa de bilhar de uso recreativo de funcionários. Não foram gastos sistemáticos, como os do reitor. Foram exceção, não regra. Ocorreu uma espécie de corrupção das denúncias contra corrupção. O exemplo mais gritante foi o da revista Veja, que falseou estatísticas para convencer o leitor de que no governo Lula instalou-se uma farra com cartões corporativos.
Veja montou um gigantesco gráfico com as curvas dos saques partindo quase do zero no mandato de Fernando Henrique e subindo, vertiginosamente, para chegar a R$ 58 milhões no governo Lula. No ponto baixo da curva colocou uma foto de FHC e, no seu pico, uma de Lula, destacando: “Aumento no total de saques no governo lula: 2.000%”.
A verdade é que os gastos totais por servidores caíram de R$ 233 milhões no último ano do governo de Fernando Henrique para R$ 177 milhões no ano passado. O que o governo Lula fez foi acelerar o processo de substituição das antigas contas tipo B, que não são transparentes e podem ser fraudadas, por cartões corporativos. Estes emitem automaticamente extrato detalhado dos gastos e são à prova de fraude. Além disso, Lula reduziu em escala maior ainda os pagamentos com cheques e criou o Portal da Transparência, que permite a todos os brasileiros detectar todo e qualquer gasto com fundos de provisão do governo. Confira você mesmo em www.portaldatransparencia.gov.br.
Enquanto isso, o governo de José Serra, em São Paulo, dobrou os gastos com cartões corporativos, totalizando R$ 108 milhões em 2007, e sem nenhum portal de transparência. Nem por isso foi denunciado por Veja – um caso claro de manipulação da informação. Essas manipulações conseguiram produzir um efeito que em teoria jornalística se chama “inversão de sentidos”. Tanto assim que, na pesquisa Sensus fechada naqueles dias, 83,2% dos consultados disseram ser contra o uso de cartões corporativos pelo governo.
Lula reconheceu a importância de algumas das denúncias, até agradeceu aos jornalistas, mas elogiou os cartões e mandou aprimorar os controles. O principal abuso, apontado pelo estudioso do assunto, Marcos Fernandes, numa das poucas reportagens sensatas da Folha, são os saques em dinheiro. Ele disse que os pagamentos com cartões são o que há de mais transparente e moderno na administração pública e em empresas privadas, mas os saques em dinheiro podem gerar desvios. Ocorre que quase metade do total em dinheiro foram saques do IBGE e outro terço da agência de inteligência, a Abin. O resto dos ministérios sacou pouquíssimo em dinheiro. Os da Abin foram justificados pela intensificação das operações e reforço exigido pela segurança do Pan. A Folha assanhou-se com os saques do IBGE e pautou seu repórter para descobrir um suposto mundo de abusos. Mas os dirigentes do IBGE deixaram claro que foram gastos indispensáveis à realização de dois censos, o agropecuário e o de contagem de população em pequenos municípios, envolvendo deslocamentos de 2 mil recenseadores em locais que só aceitam pagamentos em dinheiro. Os gastos foram auditados e conferidos, um por um.
Mesmo assim, a Folha publicou a pauta furada em tom de denúncia. O jornal tem insistido em publicar denúncias vazias ou ilações como se fossem fatos. Para se proteger, publica ao lado uma pequena retranca com a versão do “outro lado”. Marcelo Coelho, da própria Folha, chamou essa obstinação de “macarthismo das miudezas”. Foram vazias as denúncias que tentaram ligar tesoureiros do PT ao uso de cartões corporativos ou funcionários ao recebimento indevido de diárias de viagem. A revista Época deu as informações corretas e bem contextualizadas. Mostrou que 99% dos cartões são usados pelo baixo escalão do governo. É uma ferramenta de trabalho dos operadores de programas e chefes de escritórios regionais, e não uma mordomia da elite dirigente. São cerca de 13 mil funcionários, a maioria de carreira, encarregados de pagar compras e suprimentos. Podem ser considerados de um “estamento”, da burocracia, por terem poderes especiais. Mas não de elite patrimonialista.
Quase todas as reportagens omitiram que depois do gasto o servidor precisa apresentar recibos, notas fiscais e a justificativa da despesa, seja qual for a forma de pagamento, com cartão ou com cheques de contas tipo B. Outro truque foi omitir que o próprio governo fiscaliza os gastos, por amostragem e outros métodos. Uma das reportagens do Estadão escreveu que “desde 2003, primeiro ano do governo Lula, a Controladoria-Geral da União assistiu a um crescimento, ano a ano, de 65,5% no número de punições administrativas”. Notem a inversão dos sujeitos, como se CGU fosse o mocinho e o governo o bandido. Ora, a CGU é o governo, é o seu principal instrumento para coibir abusos. E a CGU de Lula tem sido especialmente severa, determinando 60% mais demissões e outras punições de servidores, por abusos, do que o governo anterior. Entidades de servidores públicos já a acusaram de perseguição.
A mídia também não considerou a ordem de importância dos valores. Chama-se a esse mecanismo de “não hierarquização dos fatos”. Como disse em editorial a revista Época, que não aderiu à manipulação, o gasto com cartões corporativos “representa uma fração pequena de todos os gastos do governo. E o fato de eles deixarem registros públicos que depois podem ser rastreados também deve ser louvado. O ponto a criticar, evidentemente, não é o uso de cartões corporativos, por funcionários, mas seu abuso”.
Fui conferir o Portal da Transparência. E descobri que o total de gastos com cartões corporativos é menos do que um décimo de milésimo da quantia gasta pelo governo. Enquanto isso, os juros e a rolagem da dívida pública consumiram em 2007 quase 60% do total. O verdadeiro escândalo revelado pelo portal é o modelo econômico do governo, que gasta em juros mais da metade de tudo o que arrecada. Mas isso a grande mídia faz questão de não ver.
A pergunta que se faz é: por que tanta manipulação? É a retomada da agenda que tenta desqualificar o governo no plano moral, já que a grande imprensa aprova e aplaude as políticas macroeconômicas, embora com uma ou outra restrição isolada. A insistência em citar o nome de Lula e seus familiares nas manchetes revela mais claramente a intenção de devassar a intimidade do presidente e, com isso, despojá-lo de toda dignidade.
(*) No período de 10.02.2003 a 30.06.2006 foi Assessor Especial da Secretaria de Comunicação Social (SECOM), da Presidência da República. Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo, junto à Escola de Comunicações e Artes - Departamento de Jornalismo e Editoração.
URL: http://ecoepol.blogspot.com/2008/03/o-escndalo-dos-cartes.html
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