05 dezembro 2006

AO ARQUEÓLOGO DO FUTURO


Os fantasmas ainda rondam


Um relato sumário do golpe militar de 64 e seus espectrais reflexos na orquestração da mídia brasileira, 42 anos depois, na tentativa de apear do poder um presidente eleito democraticamente.

Wilma Antunes Maciel

Caro arqueólogo do futuro,

Fico feliz que tenha encontrado essa carta e espero que a mensagem contida nela não se perca. Envio-a do século XXI, do início do verão de 2007, como sou historiadora vou recuar um pouco no tempo, para melhor te explicar o meu tempo presente. Vou deixar indícios e vestígios dos anos 60/70 do século XX e dos dias que ora vivemos.

No ano de 1964, o Brasil sofreu um golpe civil-militar, é isso mesmo querido arqueólogo, os militares não estavam sozinhos, parcelas significativas da sociedade brasileira apoiaram e clamaram pelo golpe que derrubou o presidente João Goulart eleito pelo voto direto. Os motivos, dentre tantos alegados: a corrupção e a subversão. Os donos do poder iriam, afastada a subversão, moralizar o país e promover o desenvolvimento com segurança, o Brasil não seria mais o país do futuro, como até então se afirmava, agora caro arqueólogo do futuro, o futuro havia chegado.

Mas, como você pode avaliar pelas cartas que tem encontrado, alguma coisa não deu certo. Deposto o presidente, iniciou-se a caçada aos inimigos do regime. Os primeiros a serem perseguidos foram os sindicalistas, pessoas ligadas ao antigo governo e principalmente militares que não aderiram aos golpistas. Uma nova legislação de segurança nacional criaria a figura do inimigo interno.

Nos anos seguintes, uma sombra de obscurantismo foi descendo sobre o país que, naqueles anos, estava incrivelmente iluminado por uma efervescência cultural visível em todos os campos: cinema, música, literatura, teatro, artes plásticas. Novos projetos educacionais, trabalhadores, estudantes ansiavam por participação, e então, caro arqueólogo, a ditadura teve que enfrentar toda essa gente que pensava, refletia e tinha projetos que não eram pautados somente no individualismo, mas num projeto coletivo que mudasse o país, quiçá o mundo.

A luta foi dura. Nos idos de 1966, os estudantes tomaram as ruas e saíram à frente das reivindicações sociais, travaram verdadeiras batalhais campais com a repressão da polícia. Nos anos seguintes, grupos de esquerda organizaram-se e armaram-se para enfrentar a ditadura, militares deixaram os quartéis; estudantes, as escolas e universidades; professores, as salas de aulas; jornalistas, as redações; camponeses, os campos; operários, as fábricas, enfim, muitos deixam seus trabalhos, carreiras, famílias, amigos e buscaram libertar o Brasil da ditadura que continuava perpetuando a desigualdade, a injustiça social, tirando toda e qualquer liberdade, implantando o medo e a perseguição aos opositores do regime.

Os órgãos de repressão da polícia agiam implacavelmente: prisões, torturas, assassinatos, desaparecimentos de pessoas; os que sobrevivem aos porões eram apresentados aos tribunais militares como denunciados e, como tais, muitos apresentaram denúncias das arbitrariedades, abusos, depoimentos forjados sob torturas, violações dos direitos humanos, contudo sofreram a repressão da injustiça militar, defrontaram-se com seus torturadores como testemunhas de acusação, foram tratados como inimigos da pátria e, mesmo diante de todo clima de intimidação, exigiram que os crimes praticados contra eles fossem registrados.

Sobre este período, o importante, caro arqueólogo, é que não seja esquecido que um grupo de homens e mulheres enfrentaram a ditadura, não só porque se fazia necessário lutar contra a brutalidade, mas porque acreditaram e deram o melhor de si na busca por um outro mundo, melhor e mais justo.

Até o final da década de 1970, a maior parte desses militantes seriam presos, banidos do país ou mortos, sendo que, até hoje, muitos desses mortos continuam sem sepultura, apesar da busca incessante das famílias pelos desaparecidos políticos. Em 1979, foi declarada anistia não só para os que cometeram crimes políticos, mas também para os torturadores, que nada mais eram do que funcionários públicos que cometeram crimes no exercício da função, e é nessa função que alguns permanecem até hoje, sem que sejam julgados ou responsabilizados por seus atos.

Assim, fizemos a "transição para a democracia", mas o espectro da ditadura continuou rondando-nos, fosse nas práticas autoritárias ou na figura daqueles que a serviram e permaneceram na cena política.

A nova máscara do fantasma
Hoje, lamenta-se e condena-se tantas atrocidades, mas é bom lembrar a responsabilidade de toda a sociedade que apoiou o golpe e a deposição do presidente João Goulart. Passados 42 anos, tivemos a volta do fantasma do golpismo, não de militares, mas dos mesmos donos do poder dos idos de 1964, orquestrados pelos donos da mídia, que no nosso país são controladas por apenas algumas famílias. Tentaram, novamente, apear do poder um presidente eleito democraticamente. Não conseguindo tal intento, trataram impedir de todas as formas a sua reeleição.

Refiro-me ao presidente Lula, um líder operário que iniciou sua trajetória política no final da ditadura militar organizando o sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista e que, depois, viria a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT), juntamente com muitos dos ex-militantes que deixaram as prisões ou retornaram do exílio. Eleito em 2002, no final do seu mandato as velhas elites acharam que era hora de dar um basta ao seu governo e, de uma forma que os eliminasse pelo menos por uns trinta anos, segundo um dos seus porta-vozes.

Por ocasião do golpe de 1964, a imprensa teve um papel importante na desestabilização do governo de Goulart, basta ver alguns editoriais às vésperas do golpe de jornais como Correio da Manhã que pediam a deposição do presidente.

Durante esses anos de "redemocratização", tentar interferir nos resultados das eleições tem sido uma prática recorrente. Emissoras de televisão, como a Rede Globo, distorcem, editam, difamam, falseiam dados. E, como muitas vezes isto deu certo, nos últimos meses, voltaram à carga e, de uma forma nunca antes vista, uniram-se e cobriram-se de golpismo e mentiras. Não ficou pedra sobre pedra. Na televisão, além dos telejornais, os programas humorísticos, de entrevistas, de receitas culinárias e as novelas bateram duro na figura do presidente e do seu partido. Na imprensa escrita, os jornais e as revistas semanais não fizeram por menos, a idéia era sangrar o governo até a morte, já que não haviam conseguido apoio popular para um pedido de impeachment do presidente.

Só que, desta vez, algo inusitado aconteceu, os supostos "formadores de opinião" não encontraram eco para suas vozes junto à população do país, e o seu candidato por mais que tivesse sido poupado de críticas e apresentado com uma bela embalagem, enfrentou uma fragorosa derrota.

De um lado, o povo que aprova as políticas sociais de um governo que pela primeira vez ousou cumprir promessas de campanha e colocou em prática programas que visam diminuir o fosso de desigualdade tão característico das sociedades capitalistas. De outro lado, o surgimento de meios de comunicação alternativos aliados a jornalistas que não compactuaram com o descaramento dos grandes monopólios da imprensa, a internet também foi uma das trincheiras, por meio dos blogs que divulgavam outros pontos de vista e mostravam a incongruência das notícias mentirosas e caluniosas, grupos de discussão se formaram e as mensagens disseminavam-se rapidamente. As tentativas de golpe foram denunciadas, os lacaios dos grandes jornais, revistas e emissoras de televisão sentiram a força dos leitores e espectadores que cobraram um posicionamento ético, cancelaram suas assinaturas e buscaram outras fontes de informações.

Espero, caro arqueólogo, estarmos iniciando um novo tempo, com uma luta pela democratização dos meios de comunicação e para que estes estejam sujeitos às mesmas regras da Justiça impostas a toda sociedade. E que no seu tempo isso seja uma realidade, que as mídias tenham sua opinião, que até apóiem candidaturas, pois sabemos que a neutralidade não existe, mas que se pautem na ética, e que jornalistas, apresentadores, artistas façam o mesmo. A liberdade de expressão de cada um não pode subestimar a nossa inteligência e tentar nos manipular de forma grotesca e mentirosa.

No momento, apesar da derrota, grande parte dos meios de comunicação não se emendam e continuam na sua jornada inglória, perdendo cada vez mais a credibilidade.

Bem, caro arqueólogo, estas são algumas pistas para que você descubra um pouco mais a história da nossa sociedade, deixo também um aviso, se algum colega seu historiador for estudar esse período por meio da imprensa, será imperioso que ele busque compreender o porquê de tantas mentiras, e faça uma dura crítica das fontes. Espero que, nas suas escavações, você encontre mais vestígios sobre as lutas do nosso povo. Procure por esses Brasis e compreenderá a lição que acabamos de receber neste momento da nossa história.

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Wilma Antunes Maciel é professora e historiadora. Estuda a ditadura militar no Brasil e realiza a pesquisa de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP sobre a participação dos militares de esquerda na luta armada. É autora do livro: O capitão Lamarca e a VPR: Repressão judicial no Brasil.

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