12 dezembro 2006

Os silêncios da imprensa


Por Dalmo Dallari

A imprensa deve ter o direito de ser livre, a fim de que possa manter o povo informado de todos os fatos de alguma relevância para as pessoas e a humanidade, que ocorrerem em qualquer parte do mundo. Essa liberdade inclui o direito de expressar-se livremente, mesmo que se trate de informação que contrarie as convicções e os interesses dos governantes, havendo geral reconhecimento de que a imprensa livre é um instrumento necessário para a existência do Estado Democrático.

Além disso, no mundo contemporâneo, são muitas as atividades, de maior ou menor importância para a sociedade, que dependem de informações corretas, atualizadas e, quanto possível, precisas, cabendo à imprensa atender também a essa necessidade social. Bastam esses pontos para se concluir que as tarefas da imprensa configuram um serviço público relevante. E por isso a Constituição proclama e garante a liberdade de imprensa como direito fundamental.

Como é evidente, esse direito e essa garantia não são outorgados como um favor ou privilégio aos proprietários dos veículos de comunicação de massa, mas têm sua justificativa precisamente no caráter de serviço público relevante, da imprensa. Mas dos mesmos fundamentos que justificam o direito e a garantia de liberdade decorre o dever de informar honestamente, com imparcialidade, sem distorções e também sem omissões maliciosas, sem a ocultação deliberada de informações que possam influir sobre a formação da opinião pública. Assim, a liberdade de imprensa enquadra-se na categoria de direito/dever, semelhante a outros de relevante interesse social, como o sufrágio.

Três omissões recentes da grande imprensa brasileira, configurando a ocultação deliberada de fatos e de informações relevantes, deixam evidente que muitos órgãos da imprensa, justamente ciosos de sua liberdade a ponto de reagir à mais leve suspeita de ameaça, andam faltando ao seu dever de informar. Uma dessas faltas foi a ocultação de um pronunciamento de defensores de Direitos Humanos, solidarizando-se com policiais vítimas de criminosos durante as agitações promovidas pelo crime organizado em São Paulo, no mês de maio deste ano. O texto do manifesto, não tendo mais do que 20 linhas, foi enviado às redações dos grandes jornais de São Paulo, os mesmos que costumam acusar os defensores de Direitos Humanos de defenderem os criminosos e de não darem solidariedade às vítimas. Nenhuma referência a esse pronunciamento foi publicada, enquanto era dada publicidade a outras manifestações de solidariedade.

Outro desrespeito ao dever de informar foi a negativa de publicar um manifesto de intelectuais, solidarizando-se com o professor Emir Sader, que sofreu uma absurda condenação por ter criticado, num artigo de jornal, uma raivosa, antidemocrática e grosseira referência do senador Jorge Bornhausen, de Santa Catarina, aos petistas, dizendo ser preciso "acabar com essa raça", bem ao estilo dos nazistas quando se referiam aos judeus. Um juiz, doutor Muller, solidarizou-se com o senador Bornhausen, e invocou a honra ofendida dos catarinenses como um dos fundamentos da condenação, mais política do que jurídica. E a mesma imprensa que tem condenado o que denomina "o silêncio dos intelectuais", por estes não darem apoio às acusações e insinuações levianas contra membros do governo e dirigentes do PT, praticou "o silêncio da imprensa", dando ampla repercussão à decisão condenatória e não publicando qualquer informação sobre o manifesto dos intelectuais.

A terceira falta ao cumprimento do dever de informar é o "silêncio ensurdecedor" da imprensa sobre o conteúdo de um famigerado dossiê, que teria sido comprado por petistas pagando somas altíssimas. Alguns quilômetros de espaço nos jornais e muitas horas na televisão e no rádio foram dedicados ao dossiê e, no entanto, a mesma imprensa que penetrou na intimidade de acusados, que divulgou informações sobre conversas telefônicas e encontros sigilosos de envolvidos no caso, que penetrou em meandros de
operações financeiras, nada informou, absolutamente nada, sobre o conteúdo do dossiê. Acrescente-se ainda que a imprensa, num prodígio de eficiência, conseguiu fotografar uma pilha de dólares, supostamente ligada ao caso, guardada num local altamente protegido, sob a vigilância de um solerte delegado da Polícia Federal. E até agora nenhuma palavra sobre o conteúdo do dossiê, não se sabendo se este realmente existe ou se a imprensa, por alguma razão, não quer revelar o seu conteúdo.

Os casos aqui referidos, e outros que poderiam ser acrescentados, deixam patente que a liberdade de imprensa, absolutamente necessária no Estado Democrático, não está sofrendo qualquer cerceamento no Brasil. É indispensável que a imprensa use corretamente essa liberdade e cumpra seu dever de informar, sem incorrer na grave falta da ocultação intencional de informações, que pode ser tão grave ou danosa quanto a divulgação de informações falsas.

Dalmo Dallari é jurista e professor da Universidade de São Paulo.

Fonte: Jornal do Brasil

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