28 agosto 2008

Encomenda, a segunda natureza do jornalismo?

Encomenda, a segunda natureza do jornalismo?


A manchete do jornal O Globo, de 24 de agosto, "denunciando" que "cada medalha custou R$ 53 milhões à União", é um primor em matéria de distorção e ocultamento da verdade. A reportagem mostra que o jornalismo de encomenda não poupa esforços quando o alvo é o governo federal.

Por Gilson Caroni Filho

Que ganha bem um editor de primeira página de O Globo ninguém duvida. "O valor do sal" é calculado de acordo com a "esperteza" dos bem selecionados peixinhos do aquário. A manchete de domingo, 24 de agosto, "Cada medalha custou R$ 53 milhões à União", é um primor em matéria de distorção e ocultamento da verdade. A reportagem, alusiva aos investimentos públicos feitos, em quatro anos, através da lei Piva e de recursos de estatais a diversas modalidades olímpicas, mostra que o jornalismo de encomenda não poupa esforços quando o alvo é o governo federal.

Talvez a melhor análise já tenha sido feita pelo leitor Álvaro Marins em comentário a um artigo que versava sobre outro assunto. O que o jornal tentou ocultar foi "que as empresas brasileiras públicas estão fazendo um investimento médio de R$ 8.000,00 por mês, por atleta, para que ele tenha treinamento e equipamentos adequados para participar com brilho de competições internacionais (que a Globo não transmite), entre elas, os Jogos Olímpicos (cujas competições a Globo só transmite se elas não alterarem a sua grade de programação). Enfim, hoje o leitor de manchetes de O Globo ficou sabendo que o governo Lula investe no esporte (como todo governo responsável) e que as Organizações Globo ficam muito aborrecidas com isso". Na mosca, Marins, na mosca.

Há dois anos, mais precisamente em 7de maio de 2006, publiquei no Observatório da Imprensa, um artigo intitulado "O velho serviço de encomenda". Peço licença ao leitor para reproduzi-lo aqui. É interessante a cadeia alimentar do campo jornalístico. Da labuta dos peixes de mercado, os ornados e pomposos extraem os nutrientes para os interesses dos peixões associados em empreendimentos políticos e econômicos. Qualquer advertência crítica à perfeição desse "ecossistema" soará como grito paranóico. Mas a leitura atenta não pode ceder aos reclamos do senso comum das redações. Nesse caso, a repetição mostra a que ponto chega um jornalismo que se considera como a única oposição confiável. Vale a pena ler de novo.

"O velho serviço de encomenda"

"Poucas vezes um jornal produziu uma edição tão explícita em intenções como o Globo de domingo (7/5). A entrevista com o ex-secretário-geral do PT, Silvio Pereira, é um primor de golpismo travestido de trabalho jornalístico. Prestidigitação e tentativas de projeção inserem-se de forma aguda nas páginas internas. O inédito exercício de futurologia trai os objetivos políticos da publicação. É o velho serviço de encomenda que não deveria surpreender a mais ninguém. A lamentar, sua previsível recorrência, apesar das loas tecidas ao exercício da democracia.

Ocupando a dobra superior inteira da primeira página, o diário alardeia como novidade bombástica a afirmação do ex-dirigente partidário, manchete da página 4: "Quem mandava no PT eram Lula, Genoino, Mercadante e Dirceu". Se notícia é divulgação, sob formato jornalístico, de algo socialmente relevante que merece publicação, fica difícil definir o que norteou o jornal carioca. Se, tal como definem os manuais, a novidade é um dos fatores de qualidade da informação, os editores parecem não ter noção de regras elementares. Ora, quem, entre os leitores da grande imprensa, não conhecia a importância hierárquica dos três políticos citados?

Definitivamente, mais uma vez, contrariando um dos slogans das Organizações, "o que pintou de novo não pintou na manchete do Globo". O que podemos ver, no entanto, é uma entrevista esburacada, sem sustentação interna e que nada acrescenta ao que já foi escrito sobre a crise política.

Todos sabemos que é a edição que confere sentido às informações contidas em uma matéria. Longe de ser mero procedimento técnico, o ordenamento do conteúdo é pautado por determinações ideológicas do veículo. No caso da entrevista, isso salta aos olhos. Basta que, tal como faz o jornal, pincemos alguns trechos do depoimento de Silvio Pereira. Escolhamos outros, diferentes dos selecionados pelo Globo, para elucidar a dinâmica:

1. "Não me conformo de o PT pagar todo o pato. Se investigassem a fundo realmente veriam isso. E o governo nada fez de errado";

2. "Só não mexi com os fundos de pensão. Os maiores ficaram com Gushiken. Mas não houve nada de errado com os fundos";

3. "Foi uma grande mística [a distribuição dos cargos]. De 7.900 pessoas que se inscreveram no sistema que eu montei, para toda a base aliada, com cargos e perfis técnicos, ficaram mais de 90% de fora. Foi um sistema legítimo".

Organizando o movimento

Ora, com base nas afirmações acima, a manchete poderia ser "Ex-dirigente do PT revela: o governo nada fez de errado". Haveria alguma distorção quanto às declarações do entrevistado? Será, enfim, o jornalismo uma atividade que comporte práticas discursivas efetivamente isentas? Creio que a resposta a estas questões já foi dada em marcos históricos bem distintos. As evidências empíricas há muito tempo desmontaram o mito da objetividade. Mas voltemos ao assunto que move nosso pequeno artigo.
Deixemos, então que o jornal fale de suas reais motivações. Segundo Soraya Aggege, jornalista que entrevistou Pereira, o que levou o Globo a procurá-lo "foi mostrar como vive o ex-secretário um ano após a crise do ‘mensalão’". Uma espécie de "onde anda você", muito comum nas editorias de esporte e seções dedicadas ao mundo artístico, mas raro, senão inédito, no campo político.

Mas por que logo ele? Havia tantos outros atores... Alguns, com predicados de barítono, como o ex-deputado Roberto Jefferson, certamente não se furtariam a atender à imprensa. Para os propósitos do jornal, porém, tinha que ser um ex-dirigente do partido. Alguém com conhecimento da máquina que pudesse, rompendo o silêncio, reiterar o que era por todos sabido como se novidade fosse. Uma legítima farsa, modalidade teatral que, desligada de princípios éticos, às vezes ganha conteúdo de denúncia à revelia do autor. Foi a isso que o Globo dedicou seis páginas na sua roupa de domingo.

Publicada na véspera da reunião do Conselho Federal da OAB, que decidiria se a entidade encaminha ou não o pedido de impeachment de Lula, a entrevista é emblemática. Mostra, sem qualquer disfarce, seu real objetivo. O que se lê na página 9 não deixa qualquer margem de dúvida. "As declarações de Sílvio Pereira – que repercutiram ontem mesmo porque a edição de O Globo começa a ser vendida nas bancas do Rio a partir das 15h – deram novo fôlego à crise".

O que impressiona é a capacidade premonitória do jornal. O que é publicado sábado permite adivinhar o que aconteceria na segunda-feira. E não estamos na seção de horóscopo. Mais uma vez a família Marinho vem a público anunciar que organiza o movimento. Orienta o carnaval e, na medida do possível, inaugura um monumento no Planalto Central do país”.
E assim será até 2010, não duvidem.


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