15 agosto 2008

Os EUA depois do conflito na Geórgia

Os EUA depois do conflito na Geórgia


Texto originalmente publicado no blog Biscoito Fino e a Massa.

Convenhamos que é meio humilhante começar a atirar e 48 horas depois implorar de joelhos por um cessar-fogo. Há algo de comovente em ver uma nação dar-se conta de que durante muito tempo acreditou num conto da carochinha. Segundo os relatos que chegam, o estado de espírito na República da Geórgia pode se resumir com uma pergunta atônita:

onde estão os americanos que disseram que nos protegeriam, que eram nossos amigos? Os georgianos descobriram, na base da porrada, o que os latino-americanos minimamente informados já sabem há mais de um século: o que os EUA querem dizer quando alardeiam seu compromisso com a “liberdade e a democracia”.

As analogias históricas não funcionam muito bem para se compreender o conflito desta semana porque a Geórgia é – ou era, até a semana passada – um dos poucos lugares da galáxia onde o presidente americano goza de popularidade real. Como se sabe, a estrada que leva ao aeroporto de Tbilisi foi batizada com o tenebroso nome de George W. Bush. Ao longo dos últimos 16 anos em que predominou uma paz tensa na Ossétia do Sul e na Abkházia, e muito especialmente desde a eleição de Mikhail Saakashvili em 2004, a Geórgia tem sido a menina dos olhos do entrismo da OTAN.

Em abril deste ano, Bush defendeu abertamente a entrada da Geórgia no Tratado, sob os olhares estupefatos dos europeus, que sabiam muito bem a provocação que isso representaria para a Rússia. Logo em seguida, 1.000 marines foram enviados à base militar de Vaziani, na fronteira com a Ossétia do Sul, para treinamento do exército georgiano. Desde a visita de Bush ao país em 2005, os EUA apresentam a Geórgia como modelo de democracia, não se importando muito com as incontáveis denúncias de violações dos direitos humanos. Tudo indica que Saakashvili imaginou que contaria com algo mais que declarações verbais americanas no momento em que iniciasse a aventura militar na Ossétia do Sul (região onde, diga-se de passagem, fala-se língua da família irânica, sem relação com o georgiano, que é língua do grupo sul-caucasiano). Para piorar sua situação, as tropas russas são detestadas na Geórgia, mas são populares na Ossétia. Resumindo: a Geórgia imaginou que tinha entrado no clube.

Não é de se estranhar que a imprensa não tenha dito muito sobre as centenas de milhões de dólares em armas, treinamento, equipamento eletrônico, aviação e morteiros fornecidos por Israel para a Geórgia nos últimos anos. Por volta de 100 agentes israelenses participaram da preparação da invasão georgiana à Ossétia do Sul. O contato aqui foi via Davit Kezerashvili, ministro da defesa georgiano, ex-israelense. Outro ministro georgiano, Temur Yakobashvili, deu entrevista a uma rádio israelense no dia 11 de agosto, afirmando que um pequeno grupo de soldados georgianos foi capaz de dizimar uma divisão militar russa inteira, graças ao treinamento israelense. Tampouco é de se estranhar que depois da surra levada pela Geórgia, Israel tenha subestimado o seu papel no processo.

Mas o que salta aos olhos neste conflito é a completa desmoralização da liderança americana. Há tempos não se via os EUA espernearem tanto com tanta impotência. O vice-presidente Dick Cheney falou em não deixar a agressão russa sem resposta e os russos solenemente ignoraram. O candidato republicano John McCain, cujo principal conselheiro foi lobista do governo georgiano durante anos, batucou seus queridos tambores de guerra sem que os russos dessem o menor sinal de preocupação. O New York Times relatou que duas altas autoridades americanas chegaram ao ponto de afirmar que os EUA estão aprendendo a hora de ficarem calados. Enquanto isso, McCain declarava que no século XXI, as nações não invadem outras nações, talvez imaginando que as invasões americanas no Afeganistão e no Iraque aconteceram no século XVIII.

Se o cálculo da direita americana foi se aproveitar do episódio para reforçar um belicismo que costuma lhe render dividendos eleitorais, há bons motivos para se imaginar que o tiro pode ter saído pela culatra. Não há indicadores claros de que a atual viagem de Condoleeza Rice à região, à reboque do presidente francês Sarkozy, possa reverter esse quadro significativamente. O que é certo é que o presidente Mikhail Saakashvili – que num discurso no sábado passado chegou a evocar McCain, um candidato a uma eleição num país estrangeiro – já pode falar sobre tiros pela culatra com a autoridade de um doutor honoris causa.

Idelber Avelar é profesor do Departmento de Espanhol e Português da Tulane University, New Orleans.

Fonte: PT


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