16 fevereiro 2007

Culpados!


O ódio e o medo da sociedade contra uma ameaça bem definida: jovens, negros, pobres, favelados. É ele o bandido, ele, o Falcão que morre quando mal alça seu primeiro vôo. Em um país socialmente considerado dos mais desiguais do mundo.

Uma discussão pode ser considerada séria quando, com argumentos razoáveis, se consegue esclarecer enigmas de uma questão ou indicar soluções plausíveis para um problema. No Brasil, a imprensa dá enorme destaque aos chamados crimes hediondos; o que seria natural, se raros fossem os crimes assim praticados no nosso país. Certamente não defendo a banalização da violência, ou mesmo que me conforme com os fatos ocorridos, justificando-os em vista de uma suposta escalada da violência em todo o planeta. Porém estranho ver que, quando uma senhora madura, de situação social, profissional e econômica privilegiadas, investe seu luxuoso automóvel contra um local público, onde supostamente estava sua rival, ferindo oito pessoas e matando uma moça de vinte anos, um ato criminoso desse tipo não é considerado crime hediondo. E não estou tratando de uma suposta ocorrência, mas sim de fato consumado, porém pouco divulgado pela imprensa, e, nesta pouca divulgação, amenizando-se a gravidade, buscando-se atenuantes que não se buscaria caso o crime tivesse sido cometido por pessoa de parcos recursos financeiros, um “zé-ninguém”, motorista de ônibus ou taxista, por exemplo. No caso em questão, ocorrido há pouco mais de uma semana, especialistas se levantaram para falar do obscurecimento momentâneo da consciência, causado pelo ciúme e também pelos hormônios da criminosa.

Dificilmente se encontra, mesmo na internet, uma matéria que trate do caso acima relatado. O que se lê, em geral, não menciona o nome da mulher que praticou o crime, mas se referem tão-somente a “Uma mulher de 58 anos que invadiu um bar com sua caminhonete Mitsubishi”. Na verdade trata-se de Carmem Regina Ulsefer, empresária, esposa de conceituado médico da cidade de Cascavel, no Paraná. Foi uma das mais discretas coberturas de um crime de tamanha gravidade à qual já assisti.

A imprensa não tem obrigação de resolver a questão da violência, mas deve tratar os fatos com seriedade, sem sensacionalismos que buscam apenas explorar a emocionalidade de populações angustiadas com problemas que se perpetuam e têm origem social definida. Nos últimos dez anos, vejo que, em geral, o que “causa indignação” no meio jornalístico é o crime que envolve a participação de adolescentes e jovens, quase sempre pobres e negros.

Editando-se as entrevistas populares, as emissoras de televisão destacam a panacéia que muitas pessoas indicam para nos livrar desses “monstros morais”: a redução da maioridade penal. No rastro da “opinião pública”, os colunistas e editorialistas jogam mais lenha na fogueira. Encarcerá-los mais cedo é sempre apontado como a solução, sem que jamais apareçam os elementos argumentativos que baseiam essa indicação. Talvez não apareçam os tais elementos pela razão singela que eles não existem.

O respeitado ILANUD (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), entre 2000 e 2001, mostrou que, dentre 2.100 adolescentes acusados, apenas 1,6% haviam cometido algum crime contra a vida, qualificado como homicídio. Além disso, examinando neste período o total de crimes cometidos no país, percebeu-se que menos de 10% deles são cometidos por adolescentes. Ou seja, essa análise recente, como outras, nos mostra claramente que o universo de jovens que cometem crimes graves é relativamente pequeno, se comparado ao do adulto. Dentro dele, a proporção dos que cometem homicídios é menor ainda, e o subconjunto dos crimes hediondos é raro. Raríssimo! Portanto, a redução da maioridade penal não teria qualquer impacto na melhora do atual quadro de violência. Portanto pede-se, clama-se, por nada!

Uma revista de grande circulação nacional e de tendência conservadora publicou raivosamente palavras contra os “menores”, favelados, claro. Porém consultando os maiores especialistas brasileiros em Segurança Pública, nenhum deles indicou a redução da maioridade penal como medida eficaz para combater a violência.. Mas, se é assim, por que a idéia persiste e ressurge sempre? Provavelmente porque esse argumento canaliza o ódio e o medo da sociedade contra uma ameaça bem definida: jovens, negros, pobres, favelados. É ele o bandido, ele, o Falcão que morre quando mal alça seu primeiro vôo. Em um país socialmente considerado dos mais desiguais do mundo.

Ele, o menor, é quem ocupa o sistema dito sócio-educativo, das FEBEMs e DEGASEs do Brasil: pobre, negro e favelado. É este também o perfil de quem geralmente vai para a cadeia no nosso país, quando consegue crescer um pouco mais. Suas mortes são vistas como “naturais”. Morrem mais meninos e jovens entre 13 e 24 anos no Brasil que em muitos países em guerra. Os números e fatos espantosos, apontados nos relatórios dos Mapas da Violência, lançados todo ano, estão disponíveis na internet. Na prática, não é preciso pedir mais severidade nas penas, pois mesmo a pena de morte já está informalmente em vigor para as camadas pobres da população.

Vítimas de qualquer tipo de crime nos sensibilizam. As pessoas querem e merecem viver, acertar e errar, consertar seus erros, serem felizes. Devemos honrar a memória de todas as vítimas dessa nossa época bárbara, porque todos nós somos filhos, pais, irmãos, esposos, amigos, avôs de alguém. E um mundo melhor é um sonho comum a todos os que estão vivos.

Em vez do rebaixamento da maioridade penal, aqueles que verdadeiramente se importam devem lutar, com mais sensatez e objetividade, para que essas histórias trágicas, deploráveis, não se repitam nunca mais. Conhecendo mais o Estatuto da Criança e do Adolescente e então exigindo o seu cumprimento, pois se trata de uma legislação elaborada para garantir direitos a todas as crianças e adolescentes, sem distinção de classe social, com a participação das idéias e sugestões de toda a sociedade.

O que incomoda no Estatuto da Criança e do Adolescente? Certamente a ampliação do poder real que ele confere ao povo, aos cidadãos, a todos nós. Entretanto, apesar de ser uma legislação em plena vigência, pouco dela foi colocado em prática. Não há como querer se revogar uma lei cujas determinações são desrespeitadas. Ora, se o Estado não faz valer o Direito, como fará para estabelecer o cumprimento do Dever? Vamos aplicar o Estatuto, antes de procurar modificá-lo. Vamos sim cobrar do Estado uma educação e saúde de qualidade, a criação de espaços de lazer e cultura nos lugares sem equipamentos sociais, programas sociais com atendimento de excelência para todos os meninos e meninas de nosso país.

Vamos ter certeza de uma verdade inconveniente: estamos todos no mesmo barco. E a opressão de tantos é nosso naufrágio.


Profa. Dra. Maria Helena Zamora, Docente da PUC-Rio, Vice-coordenadora do LIPIS, organizadora do livro "Para Além das Grades" e de publicações brasileiras e internacionais sobre a infância.

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