04 setembro 2008

O Cabaré das Crianças

O CABARÉ DAS CRIANÇAS


Faz dez anos o sociólogo Gilberto Vasconcellos lançou o livro O CABARÉ DAS CRIANÇAS., onde o tema da pedofilia é analisado através da psicanálise, da sociologia, do folclore e da crítica da cultura.

No livro, como aliás em várias de suas obras, ele se ocupa da televisão, responsável, segundo ele, pela condição ágrafa da sociedade brasileira. Alguns trechos:

"A escola foi substittuída pela telenovela e pelos programas de auditório. Resulta daí a emergência deseducadora do cabaré para as crianças e família: a novela familiar contemporânea é pai, mãe, filho e programa de auditório.

De todos os lados se impõe a interpretação da carência do pai na cultura brasileira. Somos o país da imago paterna renegada.

Ao perguntar qual é o lugar da criança, logo nos damos conta de que o país todo está infantilizado..

É inegável o traço sexual perverso na cultura.

A criança torna-se comedora voraz: oral, anal e genital precoce. Está compelida a comer imagens e, através destas, come os detritos dos programas de auditorio.

As relações pessoais acompanham a pobreza existencial das telenovelas e dos programas. É a acústica do curso tatibitati, ensurdecedora, sem silêncio e, portanto, sem conversa.

O idiotismo é a norma televisiva e radiofônica.

Brasil crianção.

A ânsia dos órfãos é a característica psicológica fundamental do cabaré das crianças."

Devo dizer que, olhando o mundo à minha volta, não posso deixar de reconhecer a correção do diagnóstico que o Gilberto faz da nossa sociedade.

O livro tem 211 páginas e é uma leitura que eu recomendo, para quem se interessa pelo tema. Será interessante confrontar as coisas que ele disse com o panorama atual da sociedade brasileira.

Seguem dois capítulos do livro.

Vidiotização dos Iletrados

A direita dá força na comunicação, tanto que o educador Darcy Ribeiro morre fracassado: a semiologia do cabaré é inimiga da letra. Escárnio fonético deseducativo, o alfabeto da Xuxa ensina que o saber brincar sexualmente como adulto é mais importante do que o ler e o escrever dos Cieps.

A violência da sociedade brasileira explode na loucura do programa de auditório para as crianças educadas na anti-escola e no anti-livro. É o que deu a escola fora da escola da rapaziada de 68: tropicália, contracultura et caterva. A TV impõe o cabaré para os futuros pais de família. É o assassinato do professor. O fim da professorinha ensinando o beabá. A aculturação psíquica imanente ao programa de auditório se faz através da ética dancing day.

De modo que a criança brasileira converte-se em animal televisivo. Tem tudo a ver: prostituição de meninas, escravização da mão-de-obra infantil, matança de pivetes, genitalização precoce, pedofilização da linguagem. Enfim, imperativo da videoesfera pop: a TV vence a escola

Telenovela sem escola. Isso é a essência espiritual da sociedade brasileira. O perigo é se o medium dominante - a TV hegemônica - conseguir incorporar a eficácia simbólica de Cristo, aí sim a TV Globo se faz carne. Politicamente o domínio absoluto da TV coincide com o niuliberalizmuz de Sarney, Collor, Itamar e FHC.


Sociologia do Tchan: A Bunda em Transe

Exibimos uma das maiores taxas de púberes prostituídas e de infanticídio em massa. Ao Brasil cabe o papel de vanguarda genital do mundo. País do esperma, frenesi de ioiôs e iaiás, burguesia fogosa, proletariado tarado. Ou como diz o recente slogan caliente da TV: todas as classes sociais têm um caso de amor com o Brasil.

A razão cínica, tanto no governo tucano quanto na civil society, condena a existência de meninos de rua, porém aplaude com indisfarçável júbilo a genitália precoce infantil dos programas de auditório.

É nesse contexto que a escola já era. Como aparelho ideológico, a escola foi substituída pelas telenovelas e programas de auditório. Da infância à terceira idade. Este é o fato mais importante, verdadeira mutação antropológica, ocorrido na cultura brasileira das últimas déca­das: a educação pela letra foi inteiramente descartada em função do predomínio da gestuália corporal de auditório.

Dança, Brasil!

O programa intitulado "Educação a Distância", cujo objetivo é suprimir a presença física do professor, irá reforçar a vídeo-semiologia do cabaré infantil, e que corresponde à dança da boquinha da garrafa para os adultos pornográficos. Assim, a cada dia fica mais difícil estabelecer uma clivagem entre adulto e criança.

É a infantilização cultural perversa que determina qualquer sucesso musical no mercado brasileiro da televisão. Se o sociólogo alemão Robert Kruss abordasse porventura a irrupção da pedofilia ou do tchan em transe, não há dúvida de que ele diria, em linguagem marxista, que a esfera anímica da bunda tornou-se um valor de troca tanto quanto a mercadoria telenovela.

A videoesfera é um sistema cósmico: quanto mais reprimida a letra, cresce a pedofilia na atual sociedade brasileira. Sucessora da Xuxa, a fada Carla Peres, ícone da "loura burra" imortalizada pelo rap do ligeiro pensador, traz a metáfora da malícia que sentou na tampa da garrafa.

Da umbigada ao tchan, do lundu (de origem africana, trazido pelo escravo banto) à bunda caucásica, opera-se o sincretismo sexual na Colônia exportadora da alegria genital de viver, mesmo em meio à matança de pivetes e à prostituição das crianças.

O andar rebolado, balançando os glúteos, quem nos trouxe foi a negra africana. A índia não rebolava. Nem a dona branca no amanhecer do Brasil durante o século XVI.

O rebolado é contribuição da África no jeito de caminhar da garota mulata de Ipanema. A dança da boquinha da garrafa refunde o axé do candomblé aculturado pela coca-cola da tropicália.

O Brasil da sociologia que venceu parece que foi o da ética do cabaré infantil. segundo a teoria clássica da vantagem comparativa e da competição no mercado.

O lundu da bunda exportada é o nosso último bem. A nova dança que surgiu, tal qual o antigo buguiugui na favela, faz enorme sucesso com a exibição da bunda loira na era fetichista no anal­liberalismo. Ao mesmo tempo ouvimos e assistimos à batalha pelo ranking da bunda colonial em transe, que é o momento convulsivo e histérico das três raças enlouquecidas nos trópicos.

Curiosamente nosso primeiro mito ecológico, o duende Curupira, não tinha ânus. Pai do saci­pererê, Curupira não era furado em nenhum lugar de seu corpo. Corpo sem orifício.

A dança da boquinha da garrafa mostra que já é possível transsexualizar o homem, mas não se conseguiu ainda enxertar um pênis funcional na mulher. Resulta daí a ênfase bissexual da bunda sem idade: a bunda in progress Enfim. nessa caricatura repetida da bunda encontrar-se-ia a metonímia do corpo social brasileiro. isto é. a parte pelo todo: Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu tchan!

Enviado por AlfredoPS

(Nota do Castor)

Gilberto Felisberto Vasconcellos, doutor pela USP e com domicílio petropolitano-mineiro, vai se configurando neste final de década como um dos cientistas sociais de visceral importância para a compreensão do país. Articulando política e cultura, seus livros iluminam a sombra trágica da queda de Jango e o do Trabalhismo para o Brasil."(Júlio Ambrózio, 2001)

"O ano era 1977. Ano crucial para sua vida. Conhece Glauber Rocha. O primeiro abalo em relação ao pensamento das ciências sociais da USP. Fico imaginando o plano fílmico. Cláudio Abramo entra com Glauber Rocha no nono andar da Folha, este encontrando Gilberto dispara: Seu nome? Gilberto. NOME COMPLETO! Gilberto Felisberto Vasconcellos. Deste encontro o sociólogo guardará ao longo de sua obra posterior o seguinte recado glauberiano: "você precisa se tornar um intelectual paulista brasileiro."(Yago Eusébio,2004)



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