Pobres e ricos
Jornal do Brasil - 10/04/2006
Fernando Henrique Cardoso, talvez se considerando homem rico, disse, em programa noturno de televisão, que os pobres quando chegam ao poder perdem o sentido do que são. Vale a pena transcrever a frase, tal como a divulgaram os jornais deste fim de semana: ''Você não pode mudar o seu jeitão quando chega ao poder. Pobre, quando chega lá em cima, pensa que é outra coisa''.
O que o presidente parece ter dito é que os pobres, ao chegarem ao poder, pensam que podem mandar, que são inteligentes e capazes. Mas - é o que se pode deduzir do que disse - os pobres são pobres, não são outra coisa. Devem ficar em seu lugar.
O ex-presidente da República, servidor do Estado, foi sempre remunerado pelo trabalho do povo brasileiro, e seu pai, respeitável oficial do Exército, também foi servidor público. Fernando Henrique se tornou bem jovem - e pelo próprio mérito - professor de sociologia da Universidade de São Paulo. O golpe militar o afastou da cátedra, mas não lhe atingiu a remuneração, porque o aposentaram prematuramente. No exterior, o professor Cardoso contou com a solidariedade internacional, dando aulas aqui e ali, e pelo que se sabe o magistério não confere mais do que uma vida digna, sem faustos, nem dificuldades maiores aos que a ele se dedicam. Podemos, portanto, aceitar que o ex-presidente não tenha falado em nome dos ricos. Ao ser entrevistado pelo irreverente Jô Soares, respondeu como um homem vindo da alta classe média, que se enriquece graças ao excepcional conhecimento que adquiriu na Presidência da República. Isso o autoriza a cobrar dezenas de milhares de dólares por conferência que profere, aqui e no exterior. Assim, por tudo isso, o professor Henrique Cardoso se autorizou a criticar Lula, não por ser Lula, mas por ser pobre. Aos pobres está vedado o poder, porque - é o que diz o sociólogo -, quando chegam lá, pensam que são outra coisa. Pensam que deixaram de ser pobres.
Estaria o ex-presidente se referindo apenas a Lula, ou a outros pobres que chegaram à Presidência da República? O torneiro mecânico é o primeiro trabalhador manual a chegar ao mais elevado cargo executivo em nosso país, mas não é, como registra a História, o primeiro de origem pobre. Houve outros pobres, e a memória nacional registra pelo menos cinco deles, à direita e à esquerda: Nilo Peçanha, nascido em Campos, de família modesta; Arthur Bernardes, filho de simples funcionário público, que teve que trabalhar para custear seus estudos; Juscelino Kubitschek, órfão, filho de professora primária, telegrafista enquanto estudava medicina; Jânio Quadros, filho de controvertido advogado do Mato Grosso, professor de ginásio quando entrou para a política; e Itamar Franco, órfão de pai, que trabalhou desde a adolescência. Todos eles tiveram que enfrentar fortes dificuldades na juventude, e a biografia de Fernando Henrique não registra esse incômodo. Naquele tempo, em que o país era menos desenvolvido, o Estado cuidava mais dos seus servidores do que dos banqueiros, e o general Cardoso pôde proporcionar conforto e educação esmerada aos filhos com o honrado soldo que lhe cabia. Hoje, e com a ajuda de Fernando Henrique, as coisas mudaram.
Deslumbrar-se com o poder não é maldição dos pobres. Quem não se recorda do fascínio que as pompas e glórias do cargo exerceram sobre o príncipe sociólogo? Em seu caso, sempre houve o desdém sobre o resto dos brasileiros. O próprio Jô Soares, que o entrevistou na semana passada, abriu um de seus programas vestido jocosamente como roceiro e usando chapéu de palha, porque o presidente dissera, horas antes, que os brasileiros são todos caipiras.
O ex-presidente governou o país como se estivesse sentado no mais alto trono do mundo, e isso faz lembrar cáustica frase de Montaigne sobre a anatomia e a arrogância do poder. Estava ausente de nossas dificuldades, preocupado em brilhar nas cortes européias e nos jardins de Harvard e Oxford. Mas não deveria ter dito o que disse. Como escreveu, em uma de suas crônicas, o inexcedível Rubem Braga, os pobres são muito orgulhosos. Devem ter anotado a ofensa.
Assim sendo, vai ser difícil aos tucanos derrotar Lula.
O que o presidente parece ter dito é que os pobres, ao chegarem ao poder, pensam que podem mandar, que são inteligentes e capazes. Mas - é o que se pode deduzir do que disse - os pobres são pobres, não são outra coisa. Devem ficar em seu lugar.
O ex-presidente da República, servidor do Estado, foi sempre remunerado pelo trabalho do povo brasileiro, e seu pai, respeitável oficial do Exército, também foi servidor público. Fernando Henrique se tornou bem jovem - e pelo próprio mérito - professor de sociologia da Universidade de São Paulo. O golpe militar o afastou da cátedra, mas não lhe atingiu a remuneração, porque o aposentaram prematuramente. No exterior, o professor Cardoso contou com a solidariedade internacional, dando aulas aqui e ali, e pelo que se sabe o magistério não confere mais do que uma vida digna, sem faustos, nem dificuldades maiores aos que a ele se dedicam. Podemos, portanto, aceitar que o ex-presidente não tenha falado em nome dos ricos. Ao ser entrevistado pelo irreverente Jô Soares, respondeu como um homem vindo da alta classe média, que se enriquece graças ao excepcional conhecimento que adquiriu na Presidência da República. Isso o autoriza a cobrar dezenas de milhares de dólares por conferência que profere, aqui e no exterior. Assim, por tudo isso, o professor Henrique Cardoso se autorizou a criticar Lula, não por ser Lula, mas por ser pobre. Aos pobres está vedado o poder, porque - é o que diz o sociólogo -, quando chegam lá, pensam que são outra coisa. Pensam que deixaram de ser pobres.
Estaria o ex-presidente se referindo apenas a Lula, ou a outros pobres que chegaram à Presidência da República? O torneiro mecânico é o primeiro trabalhador manual a chegar ao mais elevado cargo executivo em nosso país, mas não é, como registra a História, o primeiro de origem pobre. Houve outros pobres, e a memória nacional registra pelo menos cinco deles, à direita e à esquerda: Nilo Peçanha, nascido em Campos, de família modesta; Arthur Bernardes, filho de simples funcionário público, que teve que trabalhar para custear seus estudos; Juscelino Kubitschek, órfão, filho de professora primária, telegrafista enquanto estudava medicina; Jânio Quadros, filho de controvertido advogado do Mato Grosso, professor de ginásio quando entrou para a política; e Itamar Franco, órfão de pai, que trabalhou desde a adolescência. Todos eles tiveram que enfrentar fortes dificuldades na juventude, e a biografia de Fernando Henrique não registra esse incômodo. Naquele tempo, em que o país era menos desenvolvido, o Estado cuidava mais dos seus servidores do que dos banqueiros, e o general Cardoso pôde proporcionar conforto e educação esmerada aos filhos com o honrado soldo que lhe cabia. Hoje, e com a ajuda de Fernando Henrique, as coisas mudaram.
Deslumbrar-se com o poder não é maldição dos pobres. Quem não se recorda do fascínio que as pompas e glórias do cargo exerceram sobre o príncipe sociólogo? Em seu caso, sempre houve o desdém sobre o resto dos brasileiros. O próprio Jô Soares, que o entrevistou na semana passada, abriu um de seus programas vestido jocosamente como roceiro e usando chapéu de palha, porque o presidente dissera, horas antes, que os brasileiros são todos caipiras.
O ex-presidente governou o país como se estivesse sentado no mais alto trono do mundo, e isso faz lembrar cáustica frase de Montaigne sobre a anatomia e a arrogância do poder. Estava ausente de nossas dificuldades, preocupado em brilhar nas cortes européias e nos jardins de Harvard e Oxford. Mas não deveria ter dito o que disse. Como escreveu, em uma de suas crônicas, o inexcedível Rubem Braga, os pobres são muito orgulhosos. Devem ter anotado a ofensa.
Assim sendo, vai ser difícil aos tucanos derrotar Lula.
Nenhum comentário:
Postar um comentário