15 novembro 2006

As duas bandas da verdade


Por Batista Custódio


Existem governos democráticos mais autoritários que as ditaduras. Houve o ciclo do despotismo liberal em Goiás na década de 80. O Palácio das Esmeraldas usou as leis para fechar o Diário da Manhã, quando o jornal já era uma referência nacional de uma revolução que acontecia na imprensa brasileira.

Golbery do Couto e Silva, então ministro-chefe da Casa Civil, chegou a declarar categórico:

– Brasília não precisa mais ler os jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. O Diário da Manhã é mais completo.

Em muitas vezes, o ministro Golbery veio a Goiânia conversar comigo sobre o projeto da reabertura política que articulava com o ministro da Justiça Petrônio Portela e o senador Tancredo Neves. Marcus Fleury teve conhecimento das vindas de Golbery à minha casa. Siqueira Campos sabe de meu encontro com Portela.

Mas o atraso fez o tempo da ignorância no poder local, o provincianismo venceu a modernidade e fechou o Diário da Manhã. Fui me refazer nas cinzas, sem qualquer esmorecimento íntimo e consciente de que havia sido vítima de um ferimento transitório e praticado por um crime cometido contra Goiás. Era só uma questão de tempo. O povo goiano se levantaria e reabriria a verdadeira escola de jornalismo do Estado.

Eu não conhecia pessoalmente Francisco Cândido Xavier, reencarnação de Allan Kardec. O médium chamou-me a Uberaba e, ao ver-me na sala do Grupo da Prece, interrompeu a sessão e passou a falar da missão do meu espírito. Fez revelações que não as mereço e constrange-me citá-las. Uma de suas afirmações tocou-me, por haver esclarecido uma pergunta que eu me fazia e não conseguia responder. Ficava sem entender a causa de ser tão perseguido ante as posições justas assumidas. Chico Xavier elucidou:

– Não é justo punir o Batista pelo que faz e escreve. Ele reluta em tomar uma atitude e, quando se dá por conta, já assumiu posição. Não depende da sua vontade. Não é ele quem escreve o que ele escreve.

Os incrédulos têm todo o direito de zombar, mas acontece realmente assim comigo. Não defino os temas dos meus artigos, tampouco decido meus atos. De repente, um fato começa a crescer dentro de mim. Avalio o desgaste da repercussão e me contenho. Mas aquilo fica remoendo meu interior. Vai crescendo, como se a cada momento uma voz passasse a falar mais alto, argumentando até convencer-me. E venho para esta velha Olivetti, qual um cego pisando em ninhos das cobras do veneno mais perigoso, aquele que está nas serpentes das línguas maledicentes.

Venho sufocando há meses um grito na consciência. Medito e pondero sobre a crueldade no holocausto do falatório indecente e fico receoso de ver-me sendo arrastado para o esquartejamento moral pela turba moralista dos vis. É muito doloroso ser a única voz que clama entre os que não querem ouvir o silêncio da razão. Não sei por que a alma faz isso comigo, mas ela chama-me da reclusão da conveniência para o largo dos imprevistos e faz-me sentir tão culpado, nos momentos de omissão, como quem tenta dormir tranqüilo em casa fingindo não estar ouvindo lá fora o massacre de duas pessoas pela multidão dos culpados. Meço as conseqüências. São todas horríveis. E, quando menos espero, lá está o destino jogando-me às feras na sorte dos outros, como saio agora para recolher José Dirceu de Oliveira e Silva e Delúbio Soares de Castro na noite das execuções até que a História amanheça as luzes clareando não apenas tudo o que estiver debaixo do governo de Lula, mas toda a verdade que vem sendo escondida, há anos, de todos os governos dentro da República do Brasil.

Não mostraram os muitos Brasil do território político. Foi mostrada a banda da verdade de que José Dirceu e Delúbio Soares fizeram o que 99,9% dos políticos que estiveram ou estão no poder também fizeram ou fazem. A outra banda da verdade é que os dois estão com o mesmo patrimônio pessoal e os que os denunciam e acusam estão ricos. Não se fez prova material de um só centavo nos bens de ambos da fortuna que passou nas mãos deles dos caixas de campanha eleitoral para os bolsos dos que se elegeram ou usaram os mandatos populares para cobrar apoio do governo à governabilidade do presidente Lula no Congresso Nacional, nos Estados e nos municípios. O povo brasileiro percebeu tudo e deu uma sova de vinte milhões de eleitores na mídia contrária e nos oposicionistas com a maioria de votos na vitória da reeleição do presidente Lula sobre a derrota de Alckmin.

José Dirceu foi vítima do ciúme, até dentro do governo, à sua inteligência e coerência na vocação socialista. Pagou o preço da inveja dos meteoros à estrela mais brilhante no universo do Planalto. Tem luz própria e as sombras ocasionais à sua frente terminarão dissipadas pelos seus raios. O que fizeram com ele terá a duração miúda de um desses eclipses de quando a Lua atravessa passageiramente entre o Sol e a Terra.

A cabeça cheia de idéias de José Dirceu não tem espaço para dinheiro. Mesmo os sorrisos não dissimulam em seu semblante a tristeza inata na preocupação dos sonhadores. Surgiu batendo de frente com a ditadura militar e saiu das urnas populares sem os atalhos das facilidades para se tornar o homem mais poderoso do governo Lula. Caiu do cargo de ministro-chefe do Gabinete Civil, mas não conseguiram derrubá-lo do centro das decisões do cenário político brasileiro. Repetiram com José Dirceu a mesma perseguição cobiçosa contra Golbery, que está na História que não guardou os nomes dos algozes invejosos.

Delúbio Soares é o fenômeno que somente o idealismo explica o mistério de um moço romper o anonimato nas dificuldades da pobreza na roça do sertão goiano, sair plantando idéias nas praças públicas do País e haver chegado ao alto no poder sem colher, para si, ao menos uma semente nas fontes fáceis do enriquecimento ilícito. O que chegou a ele não faltou aos destinatários no endereço dos partidos aliados ao PT. Chega a ser mesmo impressionante como o volume das fortunas entregues a Delúbio foi mostrado de onde saiu e aonde chegou sem aumentar sequer uma cifra em seus bens regrados.

Não há poder maior do que o de uma pessoa que detém a confiança pessoal de um chefe de Nação. Mas é, também, a posição que desperta a ciumeira mais violenta dos homens. E Delúbio notabilizou-se como o segredo mais privado da intimidade política de Lula, e isso é uma ofensa grave aos desejos de mando dos que só entram até à sala do presidente da República. Então, a reação não poderia ser diferente. Delúbio Soares tornou-se dois alvos certeiros a uma só vez. Pelas costas, das punhaladas dos traidores no governo que gostariam de estar em seu lugar. Pela frente, dos que comiam em suas mãos e a partilha dos favores começou a minguar devido ao racionamento das doações captadas no empresariado.

O traço mais triste no caráter de um político são traição e a delação. Os personagens envolvidos no maior escândalo público de um governo no País, perceptivamente promovido com a intenção de abalar a governabilidade do presidente Lula e com o propósito de derrotá-lo na reeleição, rasgaram a máscara da falsidade em muitas carrancas da honestidade. Todos tentaram se salvar com o álibi da traição e da delação no ofertório da aliança aos seus carrascos para se livrar do cutelo nos mandatos de deputado federal e de senadores.

Nunca antes presenciou-se tamanha correria ao amiudamento dos homens. José Dirceu e Delúbio Soares permaneceram na dignidade do silêncio, degrau por degrau no enforcamento moral armado pelo Congresso Nacional. Mantiveram-se firmes aos princípios éticos da solidariedade. Não traíram a lealdade ao presidente do Brasil. Não delataram os companheiros do PT. Sequer gemeram aos cortes da lâmina afiada para expô-los aos pedaços da honra à execração pública. Assistiram-se ser enxovalhados pelos que eles possuem provas cabais de participação direta nos episódios denunciados.

José Dirceu perdeu o cargo de ministro mais influente do governo Lula em seu tempo e perdeu o mandato de deputado federal admirado como tribuno eloqüente pelo plenário, mas não perdeu o decoro da discrição dos estadistas.

Delúbio Soares caiu da bajulação geral e caiu para o alcance dos perversos, mas não caiu para a vala dos covardes e dos desertores que escapam para a submissão aos vencedores.

DIRCEU e Delúbio, não há dúvida, possuem, com certeza, um arsenal de documentos explosivos. Com potencial fulminante. Capaz de detonar não apenas o governo. Mas com munição sobrando para explodir a República Federativa do Brasil inteira. Homens assim merecem o respeito da Nação. Por haverem suportado, calados, tanto sofrimento pessoal e de sua família. Para não falarem e ferirem as instituições democráticas. É isto que me fala a voz interior que escreve o que escrevo, conforme esclarecera-me Chico Xavier. Ou, apenas, escutei a voz da consciência.

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