27 novembro 2006

A novela que não vai ao ar


Processo contra a Rede Globo SP em fase decisiva na justiça
Por Brasil de Fato, abril de 2003


O empresário Roberto Marinho, considerado um dos homens mais ricos do mundo, seus três filhos e a TV Globo Ltda, sofreram, na última semana de março, a primeira derrota no processo movido pelos herdeiros da família Ortiz Monteiro e outros, que visa anular a transferência do controle acionário da antiga Rádio Televisão Paulista, hoje Rede Globo de São Paulo, responsável por mais da metade do faturamento da rede.

O processo corre na 41ª Vara Civil do Rio de Janeiro, onde a juíza Simone Gastesi Chevrand decidiu não acolher pedido dos advogados da Rede Globo visando atribuir à causa o valor de R$ 70 milhões, uma manobra para paralisar a tramitação. Caso a magistrada acolhesse a petição, os herdeiros que lutam pela retomada do controle acionário da emissora paulista estariam obrigados a depositar em juízo cerca de R$ 1,5 milhão, apenas para dar continuidade à ação, o que na prática, inviabilizaria a causa.

Na realidade, esta decisão judicial é apenas um capítulo de uma novela que começa na década de 60, logo a após a constituição da TV Globo, e que combina elementos surpreendentes que vão desde o envolvimento de gente rica e poderosa, concessões públicas, documentos grosseiramente falsificados, trapalhadas judiciais e até mesmo estranho desaparecimento de processo ligado à transferência acionária de propriedade de 673 famílias paulistanas para o controle majoritário da família Marinho. Evidentemente, esta novela não vai ao ar e tem sido registrada com regularidade apenas pelo jornal carioca “Tribuna da Imprensa”.

Comprou-se gato por lebre?

A história começa em 1952 com mais uma cena de apadrinhamento que marca a história dos meios de comunicação no Brasil: o deputado federal pelo PTB, Oswaldo Junqueira Ortiz Monteiro, recebe de Getúlio Vargas a concessão de um canal em São Paulo , a TV Paulista. A família Ortiz Monteiro detinha então 52 por cento do capital, ficando os 48 por cento restantes pulverizados entre 673 acionistas, em sua maioria integrante de ricas famílias paulistanas.

A família Ortiz Monteiro vendeu o controle acionário da emissora para o empresário Victor Costa, com a exigência contratual de que a transferência fosse regularizada junto às autoridades federais, sem o que a venda não teria validade. O novo proprietário morre antes de legalizar a operação, com o que o controle acionário voltava automaticamente para os proprietários originais, família Ortiz Monteiro. Antes mesmo de aguarda o fim do inventário de Victor Costa, que só terminou em 1986, e no qual não há qualquer menção à TV Paulista, seu filho, Victor Costa Junior, assume no lugar o pai e, segundo os advogados da Rede Globo, vende a empresa para Roberto Marinho em 9 de setembro de 1964. Preço da transação: dois milhões de dólares, que equivaleriam hoje a aproximadamente 20 milhões de dólares.

Ora, como seu falecido pai não havia legalizado a operação de compra da emissora, seu filho, segundo os advogados teria vendido o que não possuía efetivamente.

Misteriosa assembléia

Em 27 de julho de 1976, não no “Jornal Nacional” da emissora que já então detinha a maior audiência, mas num minúsculo anúncio publicado no Diário Oficial do Estado, um edital convocava os acionistas da TV Globo São Paulo para Assembléia Geral Extraordinária para deliberar sobre “aprovação das medidas a serem tomadas pela sociedade para a regularização de seu quadro social, de acordo com determinação do Ministério das Comunicações, na forma prevista do Edital publicado no Diário Oficial de SP em 9 de setembro de 1975” . Ou seja, este Edital que ninguém leu tinha por objeto assunto que constara de edital anterior publicado 9 meses antes. No primeiro edital, assinado pelo diretor da TV Globo SP, Luiz Eduardo Borgeth, dava-se prazo de 60 dias aos acionistas fundadores da empresa para comparecerem à sede da empresa para assinar ficha individual de acionista a ser apresentada ao Dentel, uma exigência descabida já que os acionistas eram fundadores da empresa e nada deviam à sociedade. Uma leitura atenta do edital de 9 de setembro de 1975 e não repetido no edital de 27 de junho de 1976, constava advertência final que explicava de modo crucial a operação em andamento:”....o não atendimento à presente convocação significará o desinteresse dos acionistas em regularizar as respectivas situações junto ao Ministério das Comunicações e redundará em que a Assembléia Geral promova as providências cabíveis para regularizar a situação jurídica da sociedade e de seus acionistas”. “Desde quando regularizar a situação jurídica da sociedade significa subtrair direitos intransferíveis , intocáveis, desconhecer direitos de herdeiros e até de menores?”, indagava o deputado estadual pefelista Afanásio Jazahji , em pronunciamento no plenário da Assembléia Legislativa de SP, em junho de 2002, quando o caso começa a escapar do silêncio que o cerca, tornando-se, até o momento, o único parlamentar a posicionar-se publicamente sobre o processo.

Documentos falsos?

Realizada a Assembléia – Geral, à qual os acionistas não compareceram, muitos por motivo de falecimento, outros, talvez por “desinteresse” em continuarem sócios de empresa pertencente à quarta maior rede de comunicação do mundo, Roberto Marinho, conforme o edital, torna-se o único dono de todo o capital da empresa, antes uma sociedade anônima, agora uma empresa limitada, incorporada à Rede Globo

Entretanto, nesta operação de transferência acionária, foram utilizados diversos documentos, entre outros procurações e substabelecimentos, em nome de Luiz Eduardo Borgeth, cuja autenticidade é o próximo capítulo no processo que corre na 41 Vara Civil do Rio de Janeiro, nas mãos do juiz Leandro Ribeiro da Silva, que fixou prazo para que os advogados da Rede Globo apresentassem documentos comprovando o negócio.

Perícia feita pelo Instituto Grafotécnico Del Piccha, de São Paulo, comprova que os documentos usados na operação, datados de 1953 e de 1964, foram na verdade datilografados na mesma máquina de escrever cujo modelo só veio a ser fabricado na década de 70. Além disso, a máquina batia a letra “a” de forma irregular, o que apenas comprova a falsificação, dizem os peritos. O mesmo defeito de impressão também consta de recibo em nome de Roberto Marinho, datilografado na mesma máquina, porém com data de 1975. O laudo do Instituto Del Piccha afirma categoricamente que na documentação usada para a transferência acionária da antiga TV Paulista “há presença de anacronismos instransponíveis, onde fato futuro está referido em documento com data anterior à sua existência ou ocorrência”. Além da abundância de provas que tornariam “praticamente desnecessárias outras provas técnicas” – diz o laudo, os peritos chegaram mesmo a surpreender-se com o primarismo dos expedientes utilizados, já que documentos com data de 1953 e 1964, vinham acompanhados de números de CICe CPF dos outorgados e subestabelecidos, sendo que a Receita Federal só passa a usar esse controle após 1970.

Trapalhões

Em outro capítulo da novela que complica a vida da Rede Globo - já complicada pela imposição de pagar dívida de R$ 4,5 bilhões contraída no exterior - a Procuradora da República Melissa Garcia Lagitz de Abreu e Silva emitiu parecer que não apenas aponta indícios de que os documentos utilizados na transferência das ações da TV Paulista foram falsificados, mas aponta ainda a prática de outras ilicitudes já que uma das procurações usadas “já não surtia efeitos, podendo ser imputado o crime de estelionato por omitirem o falecimento do outorgante da procuração à época dos fatos.” A Procuradora reconhece que no âmbito da Justiça Federal os múltiplos crimes consumados já estão prescritos, mas fez questão de ressalvar que, no que se refere ao uso de documentos falsificados perante a Justiça do Estado do Rio de Janeiro, agora caberia ao Ministério Público Estadual a apuração dos fatos. A prescrição deixaria de ser observada face à reutilização dos mesmos documentos pelos advogados da Rede Globo, anexados ao processo para justificar a transferência acionária que demorou 12 anos para ser legalizada junto ao Ministério das Comunicações, com a emissora funcionando o tempo todo em situação irregular. Os advogados já foram apelidados de “os trapalhões”. Até o fechamento desta edição, a assessoria do Ministro Miro Teixeira ainda não havia respondido a uma solicitação de entrevista ao Brasil de Fato para falar deste processo.

Sumiço

Além das diversas características do processo que tramita na 41 Vara Cível do Rio de janeiro, também chama a atenção a notícia do desaparecimento do Processo Administrativo número 10.810/64 (Contel), que trata do ingresso do jornalista Roberto Marinho como controlador de 90 por cento da antiga TV Paulista em Assembléia Geral Extraordinária realizada em 10 de fevereiro de 1965, na qual, segundo o Deputado Afanásio Jazahzi, “acionistas ausentes e mortos foram representados por meio de procuradores desqualificados”.

Embora seja dificílimo prever o desfecho deste processo judicial, apesar da robustez das provas e do andamento favorável aos herdeiros que se consideram lesados, há uma conclusão a tirar: não será o primeiro, nem o último caso em que expedientes ao arrepio da legislação tenham sido utilizados no mercado de comunicações, exigindo, da nova administração federal, em nome do direito constitucional do cidadão à informação, uma auditoria capaz dar transparência ao setor, de modo a garantir o cumprimento da legislação que proíbe monopólios e oligopólios, por exemplo, e, sobretudo, assegurar início de mudanças que apontem para um novo modelo de comunicação no Brasil, público e democrático.

Escândalo?

“O maior escândalo do mercado de comunicação do mundo”. Eis como o deputado estatual e radialista, Afanásio Jazadzi, qualifica o processo judicial que questiona a transferência para a família Marinho do controle acionário da TV Paulista. Conhecido por suas posições conservadoras, especialmente no que se refere às políticas de segurança pública, Jazahzi afirma que os tempos mudaram e que à época da transparência acionária, havia entre os donos do poder e o regime ditatorial um ambiente que estimulava e facilitava operações desta natureza. “A ditadura precisava de uma rede de TV”,


Indagado se o conhecido poderio da Rede Globo não será um fator de dificuldade para o andamento do processo judicial, Afanásio elogiou o trabalho rigoroso dos advogados dos herdeiros da antiga TV Paulista, frisando que as provas foram colhidas minuciosamente durante muitos anos, para arrematar: “Justiça é sempre um mistério. Justiça é uma coisa, juiz é outra”, ressaltando que até o momento o processo tem tido tramitação irrepreensível.


Jazadzi disse não entender porque a esquerda não se interessa pelo episódio, mas afirma que a chamada imprensa independente ou investigativa, nem toca no tema porque há interesses entre as empresas jornalísticas que impedem uma maior divulgação. Disse que não tem recebido pressão alguma referente ao processo, mas lembra que na primeira audiência na justiça, havia 4 câmeras instaladas, sem a indicação da empresa que grava, embora nenhuma emissora televisiva tenha noticiado o fato até hoje, o que vem sendo feito de modo regular apenas pela Tribuna da Imprensa. O deputado disse ainda que os sindicatos de jornalistas não acompanham o processo porque há funcionários da Globo em suas diretorias.

O parlamentar expediu ofício comunicando o andamento do processo ao Presidente da República, ao Ministro das Comunicações e ao Procurador-Geral da República, lembrando que, de acordo com a lei, quem tiver conhecimento de ilicitudes ou irregularidades, poderá responder por prevaricação se não adotar as medidas necessárias para a investigação do caso.

O Sindicato dos Jornalistas de Brasília solicitou ao Conselho de Comunicação Social, do Congresso Nacional, a criação de uma comissão para acompanhar o processo judicial. No pedido, anexou coleção de matérias publicadas na Tribuna da Imprensa.

Paulo Nolasco de Andrade

Nenhum comentário: