08 outubro 2008

Brasil, capital Água Fria

Brasil, capital Água Fria

Por Urariano Mota

Avenida Beberibe, 1979. Estamos em Água Fria, um subúrbio recifense que muitos julgam ser periférico. De frente para o que um dia foi o Cine Império, e hoje é vulgar supermercado, vai ser inaugurada uma agência do Banco Azteca. A primeira no Brasil do grupo mexicano. Multidão de homens, mulheres e crianças tomam conta do largo de Água Fria, como antes nos idos 60 invadiam o mesmo lugar para dançar e pular o frevo. Mas agora, nesta quinta-feira 27.3.2008, não vêm para o carnaval, nem muito menos prestigiar, "dar uma força", a inauguração de uma agência pequena, sem luxo. Esperam. Lula vem aí. Lula vem inaugurar o Banco. É para isso que se reúnem tantos, tantas e tantinhos, em curiosidade e aflição, que nem sabem os últimos resultados da pesquisa CNI/Ibope, mas transformam os 73% de aprovação em sentimento. A massa, esta massa periférica, sonha, carece de melhor vida, de dinheiro, como a senhora Suzana, gorda, de olhos rasgados de índia.

- O que a senhora quer de Lula? eu pergunto.

- O senhor é do grupo dele?

- Não.... (vontade tenho de dizer "eu sou do seu grupo", mas me calo)

- Eu quero 150 reais.

- Pra quê?

- Pra comprar mortadela, pão, carvão, guaraná, cerveja, queijo, milho, aí eu faço pamonha, .manguzá...

- Isso tudo com 150 reais?!

- É só uma ajuda. Eu já tenho o carrinho de vender lanche. É só uma ajuda....

Ela aperta nas mãos uma folha de caderno dobrada, com o seu pedido, para o presidente do Brasil. Estamos do outro lado da cerca, formada por cavaletes de ferro que circulam todo o Largo de Água Fria. Repórteres passam e não se dignam a nos dirigir um olhar, a misericórdia de uma atenção. Como são importantes, como têm a consciência de que a sua importância está na razão direta do quanto se distanciem desta massa. Dos periféricos, nós, que estamos do outro lado da cerca, espremidos entre os pivetes e os cavaletes. Uma repórter, muito jovem, se dirige a duas autoridades, isso devem ser, porque são gordos, altos, brancos, e vestem ternos de xadrez. A sua fotógrafa se aproxima, e como não pode ficar o tempo todo acompanhando uma conversa que não lhe diz respeito, dá-lhe as costas, vai caminhar em um diálogo com o seu celular. Belas fotos teremos.

Lula demora. Para uma inauguração marcada para as 15 horas, já são 16 horas. Rapazes com terno preto, em um calor de 38 graus, fazem a segurança. Rijos como estátuas, com o olhar vazio de bronze.

- Desde que hora vocês estão aqui? – pergunto.

- Desde 9 da manhã.

- Com esse terno preto, debaixo deste sol?

- É bronca.

- Quanto a diária?

- Vinte e cinco reais mais almoço.

Noto que um supervisor lhe traz uma bala, de café. É bronca. De vez em quando, em um ponto da multidão, há gritos, aplausos. Os seguranças olham em direção ao tumulto. É apenas algum gaiato que anuncia, "chegou Lula". Cheguei às 14 horas e já são 16 e 20. Troco a posição dos pés, levanto um para me apoiar em um só. É pior. Se sair do meu lugar, aqui junto ao cavalete, perderei o assento, dos pés. Eu me pergunto como esses jovens se mantêm impassíveis desde as nove da manhã. 16 e 30. Há um alvoroço, há uma onda que me empurra, há uma corrente de eletricidade a passar por todos os corpos. Minha mulher, a fotógrafa, que faz sua estréia de máquina e de profissão, me desperta: os soldados da PM tomam posição de sentido.

- Olha o batedor! Olha os batedores!

Então vem um carro escuro, que entra pelo "portão" de cavaletes, e somente pára diante do que será o Banco Azteca.

- Eu pensei que Lula fosse passar por aqui. Mas ele vai descer na frente da agência – falo.

Uma senhora por trás me ensina: é ele não. Ele não faz isso não. Por isso mais tensos nos posicionamos. Súbito há um estouro, não de fogos, nem bem de boiada. Há um rumor que cresce, que se torna incontrolável, que mais lembra um orgasmo coletivo. Sofrido, querido e esperado. É Lula! É Lula! Todos gritam. As vozes competem entre si. Os berros se fazem ouvir mais alto, ensurdecedores e alto. Mulheres, meninos, homens chamam sua atenção, querem chamá-lo, e Lula não sabe exatamente para que lado do cercado de cavaletes se dirige. Na hora uma idéia tenebrosa me ocorre: se caísse um raio aqui, todos morreriam felizes. Mas essa idéia não atinge palavras. Lula, guiado pelo governador Eduardo Campos, vem para o nosso lado. É ele. A minha fotógrafa se esquece em absoluto de mim, o repórter, e avança para o círculo estreito onde todos, todas e todinhos querem tocar a mão do presidente. Aos gritos. Aos prantos. Aos empurrões. À força, ainda que contidos e reprimidos pelos jovens rapazes de negro.

A última vez em que vi algo semelhante e parecido foi em 1965, no último dia de carnaval, neste Largo de Água Fria. Tocou Vassourinhas e não havia força humana que contivesse o gozo da multidão em fúria. Lembro bem A poeira subiu. Os gritos de libertação se gritaram com força. Uma felicidade, um desassosego, um dessufoco, se assim podemos escrever. Quando Vassourinhas foi anunciado como se anunciam os batalhões na guerra, e quando por fim num surto Vassourinhas avançou, subiu uma nuvem de violência no ar. Houve bombos, percussão intensa, mas não sabíamos se o baque pesado vinha dos bombos ou dos passos, dos muitos pés, pontapés, cotoveladas, golpes que homens e mulheres se davam. Toda aquela gente enlouqueceu, queria correr, mas não saía do lugar, porque estava cercada por todos os lados. Imaginem que aquela gente, cada homem, cada mulher, cada menino, todos queriam ainda assim abrir espaço à sua volta, e todos queriam isto a um só tempo.

Assim como desta vez. Agora sem frevo, sem orquestra, sem metais. Desta vez a multidão delira como se estivesse diante de um astro pop. O presidente passa para as pessoas a idéia de um santo, porque tem poderes para ajudar os que padecem, e de fascínio, porque mostra como um homem do povo consegue ser bonito e importante. Por isso as mulheres gritam, "É Lula!... Lula, meu lindo!", por isso os homens lhe apertam a mão, com força e calor, por isso os meninos levantam a cabeça, todos os meninos levantam a cabeça. O Largo de Água Fria explode, mesmo sem fogos, somente com o fogo dessa gente, que eu pensava que só se embriagava de álcool e frevo. É Lula.

Uma vez na vida eu vi: Brasil, capital Água Fria.


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