18 setembro 2008

Dia de Luto Para Brasileiros e Corinthianos

Dia de Luto Para Brasileiros e Corinthianos


Mauro Carrara

Morreu hoje(17/09), aos 75 anos, o amigo Lourenço Diaféria, como eu, filho do Brasil e do "Brás", filho da fantástica década de 30. Era um cronista maior, figura humana maior, um brasileiro maior, um corinthiano maior.

Lembro-me de nossa angústia quando foi preso em razão do conteúdo da crônica "Herói. Morto. Nós.", publicada em 1o. de Setembro de 1.977. Ao tratar da morte do sargento que se atirara num poço de ariranhas para salvar um garoto, Diaféria apresentara velada crítica ao regime militar e ao Duque de Caxias, algoz do povo paraguaio. Escrevera:

O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

Ao escrever sobre a fundação de seu Corinthians, produziu alguns dos mais belos textos sobre a formação do povo brasileiro nas sociedades urbanas. Em "Coração Corinthiano", financiado pela Fundação Nestlé, em 1.992, ele conta a saga dos operários, carvoeiros, condutores de tílburi e ex-escravos que conquistaram o protagonismo social pela via do esporte bretão.

Diaféria retrata o multicultural Bom Retiro, descrevendo com minúcia seus personagens, como os espanhóis de sangue quente, os portugueses teimosos e as "intalianignas" bonitas que seguiram o cortejo rumo ao primeiro embate esportivo do alvinegro.

O livro indica a inspiração dos jovens trabalhadores: o Cometa Halley. Mostra também a agitação nos estratos ditos subalternos, causada pelos coletivos anarquistas, que se espalhavam pelas fábricas da cidade. Era gente brava e doce, ao mesmo tempo, sedenta de inserção social.
Meu patrício do Brás percebera no Corinthians a mais evidente expressão do Brasil miscigenado, mutante e combativo. Segundo ele, o clube dos "carroceiros e operários" era a melhor síntese de nosso povo.

Por seu temperamento, por seu caráter e por suas posições políticas, Diaféria fez menos sucesso do que merecia, e foi menos conhecido do que tantos facínoras que transformam suas colunas em balcões de negócios sujos.

Se lhe faltou e faltará reconhecimento, que ao menos seja lembrado com carinho pelos amigos.

Nota:

Lourenço Diaféria, cronista e jornalista, morre aos 75 anos em São Paulo

Em São Paulo
O cronista e jornalista Lourenço Diaféria, 75, faleceu na noite de ontem em sua casa, em São Paulo, em decorrência de problemas cardíacos. Diaféria, pai de cinco filhos, apresentava problemas de saúde há cerca de um ano. O corpo está sendo velado no cemitério Getsêmani, no Morumbi, zona sul da cidade, e o sepultamento será à tarde.

Paulistano do Brás, Diaféria iniciou a carreira jornalística em 1956 na "Folha da Manhã". Começou como cronista em 1964 - no mesmo ano do golpe militar - quando o jornal já se chamava "Folha de S.Paulo".

Permaneceu no periódico paulista até 1977, quando foi preso pela Polícia Federal, enquadrado na Lei de Segurança Nacional, pelo conteúdo da crônica "Herói. Morto. Nós.", que foi considerada uma ofensa pelas Forças Armadas.

O texto, que integra o livro mais recente do cronista, "Mesmo a Noite sem Luar Tem Lua" (Boitempo, 2008), faz uma homenagem ao sargento Sílvio Delmar Hollenbach, que pulou em um poço de ariranhas, no zoológico de Brasília, para salvar um garoto que ali havia caído. Acabou morrendo, mas salvando o menino.

"Que nome devo dar a esse homem? Escrevo com todas as letras, o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou um tiro, se não foi enforcado, tanto melhor", registrou Diaféria.

A reverência se transforma em uma crítica mordaz aos militares quando o cronista afirma preferir esse sargento ao herói duque de Caxias, o patrono do Exército, "um homem a cavalo reduzido a uma estátua".

Depois da comparação, Diaféria prossegue com críticas diretas aos militares da ditadura. "Esse sargento não é do grupo do cambalacho. Esse sargento não pensou se, para ser honesto consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar".

O jornalista ficou pouco tempo preso e foi libertado após absolvição no Supremo Tribunal Federal.

Diaféria ainda escreveu para o Jornal da Tarde, Diário Popular e Diário do Grande ABC, além das rádios Excelsior, Gazeta, Record, Bandeirantes e para a TV Globo. Autor de vários livros, entre suas obras mais recentes estão "O imitador de gato" (Ática, 2000) e "Brás - Sotaques e Desmemórias" (Boitempo, 2002).


HERÓI. MORTO. NÓS.
Lourenço Diaféria

Crônica publicada em 1º de setembro de 1977. Por esse artigo foi preso e processado pela Lei de Segurança Nacioinal

Neste texto foi mantida a grafia original da época

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.


Lourenço Diaféria escreveu a crônica abaixo referente ao nosso ex-metalúrgico e hoje PRESIDENTE DO BRASIL.

Lula - Greve em 1980 - ABC


Bilhete pra um operário
Lourenço Diaféria

Pegaram um dia um operário e disseram-lhe:
Senta-te no banco dos réus.
És acusado de haveres nascido com sonhos na cabeça. És acusado de teres os cabelos
encaracolados. És acusado de teres bigodes vastos, negros, provocativos.
És acusado de teres alguns pedaços de dedos a menos que o comum dos mortais, podados pelas engrenagens das máquinas.
És acusado de ficares pelas esquinas conversando em voz baixa com amigos enquanto a luz dos postes te ilumina o suor do rosto. És acusado de terem te visto no bar dando gargalhadas.
És acusado de tua casa ter um pequeno jardim com grama e flores.
És acusado de conheceres a sinfonia das sirenes das fábricas anunciando a aurora do primeiro turno. És acusado de seres reconhecido na portaria e todos te cumprimentarem, e te baterem levemente nas costas com alegria, e te dizerem: olá, meu chapa.
És acusado de inventares um partido que não é o único, mas não se confunde com siglas e teorias de alfarrábios envelhecidos.
És acusado de fazeres discursos de improviso com vigor e garra que nascem do fundo das vísceras do espírito.
És acusado de não seres magro nem raquítico como teus irmãos deviam ser.
És acusado de jogares baralho e dares dores de cabeça aos homens sérios deste país. És acusado de usares gravata em vez de macacão, vestindo-te com roupas só permissíveis no enterro do melhor amigo. És acusado de freqüentar reuniões e discutires com sábios e iluminados sem pedir licença nem apresentar diploma. És acusado de te haverem visto com ministros, criaturas importantes, e não te ocorrer submeter-se a elas.
És acusado de não teres te colocado no lugar cavado para o oprimido. És acusado de haveres gritado com toda a força de teus pulmões fuliginosos.
És acusado de teres filhos bonitos e uma mulher doce, que devia ser feia e talhada a foice.
És acusado de não seres rapaz comportado, meigo, gentil, acetinado.
És acusado de conheceres a prensa, e não te afugentar o ronco que ela faz na madrugada.
És acusado de quereres a pátria livre, e livre, também, o coração e os sentimentos do homem.
És acusado de rezares e de pôr a boca no trombone quando todos se calam e descrêem de Deus e
dos homens.
És acusado de teres o desplante de ser líder num país desnaturado onde quem levanta a fronte é triturado.
És acusado de haveres perdido a paciência de esperar pelo futuro que não chega nunca.
És acusado de usares sapatos 42, de couro, quando o normal é sandália havaiana.
És acusado de romperes as cadeias invisíveis que amarram teus braços peludos e tuas mãos penadas.
És acusado de atraíres os operários com tua voz, teu berro, teu silêncio, teu olhar, tua dor, tua ânsia, teu mistério, e saberes contar, sorrindo, tristes histórias recolhidas em barracos e cômodos-e-cozinhas.
És acusado de estares em pé, quando devias estar de bruços, de borco, exangue e vencido.
És acusado de não seres o que queriam que tu fosses.
Meu caro operário sentado no banco dos réus, por favor, recebe este recado:
Se existir mesmo essa senhora difusa e vaga a que chamam Justiça, confia nela.
Não creio que essa matrona seja cega.


* Texto de Lourenço Diaféria , publicado no Jornal Folha de São Paulo, no dia 15/09/80.

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