13 setembro 2008

Jorge Hage: lei atual não manda rico para a cadeia

Jorge Hage: lei atual não manda rico para a cadeia



O ministro-chefe da Controladoria Geral da União, Jorge Hage Sobrinho, revela que apenas em 5% dos municípios brasileiros o dinheiro público é usado corretamente

Por Bob Fernandes

Os intestinos do Brasil.

O que se discute nestes dias é a gramparia. No Supremo Tribunal Federal, no Congresso, nos governos, nas polícias, e na mídia: quem fez, quem não fez, por que teria sido feito? O que esse debate tem deixado de lado nestes dias é quem, quando, como e onde rouba, desvia ou usa mal o dinheiro público.

O ministro-chefe da Controladoria Geral da União, Jorge Hage Sobrinho, provocado por Terra Magazine oferece aqui uma contribuição para que se percorra todo o intestino, não apenas a porção que interesse à facção A ou B.

A Controladoria existe há 6 anos. No seu Portal da Transparência está à disposição de quem assim o desejar o destino de cada centavo dos R$ 4 trilhões de dinheiro público gasto pelo governo federal ou repassado para os governos municipais e estaduais desde 2004.

Seria útil que todos os envolvidos no ruidoso debate prestassem atenção no que, nos parece, é sintoma de algo muito grave: a CGU, através de seus fiscais, já investigou o uso de dinheiro público em 1.401 cidades do Brasil - 25% dos municípios do país, o que vem a ser uma extraordinária amostragem.

Resultado da devassa feita em R$ 9 bilhões gastos Brasil afora: apenas, só, somente 5% dessas cidades gastaram com correção o dinheiro público. Em 20% dos casos se flagrou "casos graves" de corrupção, nas palavras do ministro, e em 75% dos demais municípios ou houve mau uso das verbas públicas ou se detectou aquela "zona cinza" - outra vez palavras de Jorge Hage - entre o erro no uso do dinheiro e o dolo, a corrupção.

Repetindo, para ficar claro: em 20% dos municípios se roubou escancaradamente, em 75% houve casos ou de corrupção ou, pelo menos, de desvio na finalidade quando do emprego das verbas.

Quem anda, não sem razões, estranhando o clamor por justiça e justiceiros, talvez deva refletir sobre a possibilidade de haver uma estreita conexão entre este extremado clamor - que tantas vezes leva ao atropelo do sistema legal - e o escárnio que é a inexistência de punição para "quem tem", para quem pode pagar, de uma forma ou outra, e escapar da justiça.

Palavras mais uma vez do ministro Hage que, a propósito, é juiz aposentado:

- Um bom escritório de advocacia não deixa que um processo penal chegue ao fim no Brasil em menos de 15 a 20 anos.

Pergunta de Terra Magazine:

-(...) no Brasil, corrupto rico não vai para a cadeia?

Resposta:

- Se vai, não ficará preso(...) Enquanto a legislação processual brasileira for o que é, ninguém será condenado.

(Propostas de reforma nessa legislação dormem no Congresso Nacional.)

Jorge Hage faz uma ressalva:

- Do ponto de vista da ação que nos cabe já pusemos para fora da Administração Federal, em 5 anos e meio, mais de 1.800 funcionários. E não é só bagrinho, não...

O ministro-chefe da CGU considera "justa a indignação" com grampos fora do controle, mas não vê com inocência a motivação de muitos dos debatedores, ou de seus propulsores:

-... essa grita toda, além de tudo, tem tido o resultado certamente muito interessante para eles de desviar totalmente o foco... o que também era para estar na agenda, na pauta, era o quê? Era a investigação do crime.

No primeiro dia de vida de Terra Magazine, a 17 de abril de 2006, Jorge Hage, já na CGU, declarou que "rouba-se muito no Brasil, do Oiapoque ao Chuí" (leia aqui: Rouba-se em até 80% dos municípios, diz ministro). Dois anos e meio depois, conversamos novamente:

Terra Magazine - Há quantos anos a CGU existe?
Jorge Hage - A Controladoria com a configuração atual é de 2003. Então nós estamos aí ainda para completar 6 anos.

Quantos municípios já foram visitados pela fiscalização naquele programa com sorteio da Caixa, aquele dos municípios onde a Controladoria fiscaliza o uso de verbas públicas...?
Mil quatrocentos e um, o que corresponde a cerca de 25% do total de municípios brasileiros.

Se fosse uma pesquisa de opinião pública...
Seria uma gigantesca amostra.

E que tipo de cidade? Qual é o número de habitantes?
Até 500 mil habitantes.

A enorme e imensa maioria é de municípios com menos de 100 mil habitantes.
A enorme maioria é com municípios abaixo de 100 mil. E nós chegamos até 500 mil. Só ficam de fora pouquíssimos municípios além das capitais e mesmo assim nem todas. E nós não as incluímos no escopo porque é inadequado fiscalizar uma administração grande como a do Rio, São Paulo ou Salvador no modelo dessa fiscalização, onde os fiscais passam somente uma semana no local. Nas grandes cidades nós temos um outro programa que não fiscaliza por sorteio, fiscaliza por obra.

Qual programa?
É um outro programa nosso que é a fiscalização em grandes cidades e capitais onde nós fiscalizamos por cada obra, as de maior relevância.

E já há quantificação dessas visitas?
Não, porque essa não tem uniformidade. Agora na do sorteio, é importante observar que a gente já fiscalizou mais de R$ 9 bilhões.

No primeiro dia de Terra Magazine no ar nós tivemos uma conversa sobre a corrupção no Brasil, em meio à crise do famoso "mensalão". Já eram à época mais de mil municípios visitados e a sua expressão, então, era de que 'roubava-se muito no Brasil', e foi dito também que em até 80% dos municípios do país tinham casos graves de desvio de dinheiro público. O que é possível dizer dois anos e meios depois?
Nós temos uma porcentagem que foi construída ao longo desses cinco anos. Uma gradação, um ranking, de tipos de irregularidade em três grupos: as graves, considerando aí somente as muito graves; as médias e as irregularidades apenas formais.

Falhas formais, não corrupção necessariamente?
Não corrupção. Nessa classificação, nós temos 20% das falhas consideradas graves.

Quer dizer: corrupção mesmo, grave.
Muito graves. 75% nós classificamos atualmente como falhas médias, de gravidade média.

Seria o roubo de galinha?
Não, não é nem roubo necessariamente. Quando se trata de algo que não é grave, que não se pode afirmar com segurança que é roubo, mas é algo que fica naquela faixa nebulosa, cinzenta, que pode ser desconhecimento das normas, falta de maior cuidado e zelo com a coisa pública, mas não se caracteriza...

...fica naquela zona cinza...
Zona cinza. As graves são aquelas em que indubitavelmente existe dolo, má-fé, existe desvio de dinheiro público.

Quanto já foi fiscalizado em dinheiro?
R$ 9 bilhões, somente na fiscalização de municípios por sorteio.

E disso, qual o montante desviado, seja por um motivo ou por outro?
Se nós considerarmos as falhas graves, como aquelas em que existe prejuízo indiscutível aos cofres públicos em benefício privado, nós temos aí 20% de R$ 9 bilhões, seria algo em torno de R$ 1,8 bilhões.

Os outros 75% podem ser, por um motivo ou por outro, por descuido ou não, mau uso de dinheiro público?
Mau uso.

Aí é estarrecedor porque 20% é de corrupção comprovada, muito grave, e 75% de mau uso significa que 95% das cidades têm alguma espécie de problema...
Nas médias você tem uma diversidade muito grande. Por exemplo, quando a prefeitura recebe um recurso para um determinado programa e aplica em finalidades diferentes. O programa não deixa de cumprir sua finalidade. Isso não quer dizer necessariamente que alguém pôs dinheiro no bolso.

Claro, mas pode ser mau uso, ou uso indevido, que não leva à sua finalidade.
Exatamente.

Então é muito grande essa margem na verdade, não é?
Com certeza.

É impressão minha ou isso é algo assustador?
Dependendo de quem se assusta (risos). Nós aqui não nos assustamos com nada mais.

Não tem nem a chance de se assustar mais.
Nós não temos o direito de nos assustar e nos surpreender com mais nada.

Eu li recentemente uma pesquisa do Vox Populi sobre corrupção no Brasil. Fale-nos um pouco sobre essa pesquisa. Ela foi feita pela Universidade Federal de Minas Gerais, é isso?
Foi encomendada pelo Instituto de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais ao Vox Populi e traz algumas informações muito interessantes, com uma amostragem muito grande feita no país inteiro.

Tem uma questão muito interessante sobre a percepção de corrupção, se eu bem entendi.
É. Eles perguntam em primeiro lugar se a corrupção atualmente no Brasil é muito grave, grave, pouco grave etc. 77% das pessoas respondem que é muito grave, e 20% respondem que é grave. Foram entrevistadas 2.421 pessoas no país inteiro entre os dias 10 e 16 de maio de 2008. Aí vem uma segunda pergunta, que é muito relevante, em que eles indagam qual das seguintes frases mais coincide com a opinião da pessoa. A primeira é se "durante o governo Lula houve um grande aumento da corrupção no país".

Qual o percentual de resposta?
O percentual de resposta é de 17%. A segunda alternativa foi: "o que aumentou não foi a corrupção, mas a apuração dos casos escondidos". 75% dos entrevistados responderam que essa é a informação que é mais parecida com a sua opinião. Ora, isto revela aquilo que nós vínhamos sustentando há muito tempo: o que aumentou no Brasil foi a investigação e a conseqüente divulgação de tudo que já estava aí debaixo da tampa do esgoto, escondida. O que nós fizemos foi destampar o esgoto, rasgar o tumor, e aí é claro que as pessoas passam a ter consciência de que existe aquilo que sempre existiu. Ninguém é ingênuo de imaginar que tudo isto foi inventado agora.

E qual a última alternativa?
A última alternativa é 'não concordo com nenhuma delas', e aí 4% respondem e outros 4% não sabem.

São os netos da velhinha de Taubaté...
(risos) É, com certeza.

Diante disso, eu lhe pergunto: quanto está no Portal da Transparência, para que qualquer cidadão possa clicar?
No Portal da Transparência nós já temos expostos à visibilidade mais de R$ 4 trilhões de despesas públicas.

Quer dizer, quem quiser saber onde está o Bolsa-Família vai lá e clica. Está tudo lá?
Ele digita www.portaldatransparencia.gov.br, não precisa ter senha, não precisa nada, e acessa tudo.

Mesmo aquela pessoa que tem dificuldade...
Sem dificuldade nenhuma porque é uma linguagem cidadã. Isso é o que diferencia o nosso portal de todos os anteriores e da maioria dos existentes em outros países, onde as coisas são traduzidas para que o cidadão enxergue diretamente sem precisar entender nada de orçamento público. Ou seja, os programas têm os nomes populares. Por exemplo, o Bolsa-Família lá se chama Bolsa-Família. Merenda escolar é merenda escolar.

Quem quiser saber se o Zequinha das Candongas lá em Cocorobó está recebendo ou não é só ir lá e clicar?
Vai lá e clica no mapa do Brasil, escolhe o estado dele, abre a relação de municípios em ordem alfabética, escolhe o município e aí vê todos os programas federais que jogaram dinheiro no seu município. Se ele escolhe o Bolsa-Família, por exemplo, ele vê nome por nome as pessoas listadas e os valores que recebem a cada mês. A conseqüência disso é que as irregularidades no Bolsa-Família caem vertiginosamente ano a ano. Nós iniciamos com um índice de cerca de 20% de irregularidade e hoje está abaixo de 3%. Por quê? Porque os cidadãos são os melhores fiscais. Eles conhecem as pessoas de cada cidade, sabem quem é a mulher do prefeito, se a irmã do vereador está recebendo o Bolsa-Família... E ele denuncia no próprio portal. Tem um formulário para ele denunciar, ou ele faz direto ao ministério de Desenvolvimento Social e as providências serão tomadas. Isso é a demonstração de como a transparência é o melhor remédio contra a corrupção.

Esses R$ 4 trilhões significam quanto do montante de verba pública?
Significam a soma total do orçamento de 2004 para cá, toda exibida no portal, incluindo as despesas diretas dos órgãos federais, os investimentos em estradas, portos, etc. As transferências para estados, municípios, transferências diretas para cidadãos, está tudo lá no portal. Um outro dado fundamental na nossa avaliação é o crescimento dos acessos. Nós começamos com uma quantidade de acessos da ordem de duas mil por mês, e hoje estamos com mais de 110 mil acessos por mês.

No que resultou essa fiscalização do ponto de vista prático?
Os resultados são de várias ordens. O primeiro deles é uma melhoria na gestão. Por quê? Quando o gestor público sabe que ele está sendo vigiado, visto com total visibilidade por quem está fora, mesmo que ele seja uma pessoa honesta, correta, ele passa a ter muito mais cuidado, cautela e zelo. E o índice de irregularidades por descuido, por falta de preocupações maiores, até isso cai. Nós vimos por exemplo, no caso do cartão de pagamento, o suprimento de fundo. A partir do momento em que colocamos no Portal da Transparência... hoje nem se fala mais em irregularidade, desapareceu da agenda nacional. Outra conseqüência dos nossos trabalhos é o envio de todos os casos de irregularidades ao Ministério Público para as ações judiciais, penais e civis. Nós mandamos ao MP todos os relatórios e um bom número deles tem se convertido em processos judiciais. Aí é que o carro segue. Depende da legislação processual. Como você sabe, a brasileira é aquela que, no mundo, oferece o maior número de recursos e possibilidades de chicana processual, de modo que um bom escritório de advocacia...

...resolve a questão. Disso nós vamos saltar daqui a pouco para uma questão do momento. Mas antes, uma última pergunta: e agentes públicos?
Nós encaminhamos também o resultado desse trabalho para a nossa Corregedoria, que é uma das unidades da CGU, e que é a cabeça do sistema de correição do governo federal, criado em 2005. Através dela, nós colocamos uma Corregedoria voltada para atuar em cada ministério. O resultado: nós já pusemos fora dos quadros da administração federal 1.846 agentes públicos, de 2003 para cá. Afastados por improbidade administrativa, valimento do cargo por interesse próprio, recebimento de propina e por aí afora. Ou seja: motivos ligados à corrupção em sentido amplo correspondem a 75% desse total, dos 1.846. O restante são coisas mais leves, como abandono de cargo e outros fundamentos menores.

Eu estou quantificando isso e vou repetir um dado. Se eu entendi direito, em 25% dos municípios do Brasil - o que é uma amostra extraordinária - há 20% de casos muito graves de corrupção. Outros 75% têm problemas de mau uso da verba pública, ou seja, não foi direcionada ao local correto, ou há sombras cinzentas, não se sabe se foi corrupção ou se foi uma falha, um equívoco. Somados, temos assustadores 95%. Diante disso, eu queria fazer uma pergunta já transportando para o momento de agora: o bombardeio em relação à Operação Satiagraha e à questão dos grampos. Há certamente uma grande confusão entre o uso à exaustão de grampos civis, feitos por empresas privadas, e um grampo, hipotético, feito por autoridade policial com o consentimento de juízes. Surgem teses como, por exemplo, o não-uso de escuta telefônica, de interceptação telemática. Diante de tudo que nós estamos conversando, o que o senhor pensa como gestor, como alguém que, no caso, fiscaliza exatamente a corrupção no uso de verbas públicas?
Olha, eu lhe digo que estou extremamente preocupado. É preciso evitar que se utilize essa onda de justa indignação, em muitos casos sincera indignação por parte de alguns, que se utilize isso...

...justa indignação em relação a quê?
Indignação em relação a escutas, a grampos que atingiram pessoas que obviamente não tinham nenhum motivo para estarem sendo objeto de eventual bisbilhotagem. Eu pessoalmente não acredito que tenha sido praticada pelas instituições, nem Abin, nem Polícia Federal, obviamente, e não me refiro a indivíduos, mas às instituições.Todo mundo sabe que mecanismos de escuta hoje em dia podem ser adquiridos até na feira do Paraguai.

Feira do Paraguai aí em Brasília...
É a feira dos importados, para não ofender os nossos irmãos paraguaios.

É uma feira em Brasília onde todo mundo compra o que quer...
Isso. Material eletrônico etc...

E certamente todo mundo declara tudo à Receita Federal, a propósito da nossa conversa...
...Pois bem. O que é preciso evitar é que se utilize isso (a justa indignação) para inibir e para desqualificar a investigação e a persecução criminal dos crimes de colarinho branco no Brasil. A investigação da corrupção precisa, necessita usar vários meios de prova e de apuração, inclusive meios sofisticados exatamente porque nós estamos lidando com o tipo de criminoso...

...que inclusive se vale desses mesmos meios, e privados, não os do Estado...
...mais qualificado, que não deixa impressão digital...

E que alguns deles usaram ao longo dos anos e não se viu tamanho alarido como agora se vê.
É evidente. Essa grita toda, além de tudo, tem tido o resultado certamente muito interessante para eles de desviar totalmente o foco da agenda nacional. O que era para estar na agenda, na pauta, era o quê? Era a investigação do crime.

"Do crime": o senhor está se referindo ao caso da Satiagraha?
É, e a todos os outros. Todos os outros desaparecem do noticiário nacional e o objeto da apuração, que é o que interessa ao país, e em seu lugar, passa a ser objeto da agenda nacional a discussão sobre os meios investigatórios.

Que também cabe, que também tem que ser apurado, mas não com o abandono do caso original...
É evidente. Então, no meu entendimento isso é preocupante porque num dado momento se prioriza as algemas. Algemas que são utilizadas pelas polícias do mundo todo. Num segundo momento, se quer demonizar também as interceptações telefônicas.

Mesmo as legais e judicialmente autorizadas?
Judicialmente autorizadas na forma prevista na Constituição e na Lei. Porque ninguém aqui vai defender a bisbilhotagem, é óbvio. Seja de qualquer origem, a bisbilhotagem, obviamente jamais deverá ter apoio de ninguém. Agora, confundir isso ingenuamente ou não perceber a quem interessa essa reação desproporcional e indiscriminada contra o uso correto e legal, autorizado...

Sem falar na demonização também de pessoas, instituições...
Claro, evidente. Porque aí você está na verdade desqualificando todo o trabalho da polícia, do Ministério Público, de todas as instituições que estão aí para investigar e fazer a persecução do crime.

Certo...
Além disso, há que notar também que determinadas medidas legislativas, que poderiam facilitar a persecução de crimes como esse, como por exemplo o projeto de lei que tipifica como crime o enriquecimento ilícito, que a Controladoria elaborou e o presidente Lula encaminhou ao Congresso em 2005...

Projetos que não são votados...
Está praticamente parado. Se isso já fosse lei, facilitaria enormemente o combate aos crimes contra a administração pública e aos crimes financeiros, porque você pegaria o criminoso pelo resultado do seu patrimônio, dispensando ou tornando desnecessária a prova material...

De que o cidadão roubou uma barbaridade. Se ele tinha uma casa e agora tem duzentas, de algum lugar veio, se ele não tem proventos que justifiquem...
Exatamente. Você não precisaria fotografá-lo enfiando a mão no cofre. Isso jamais se consegue. Porque, exatamente, os meios para se detectar esse crime são sofisticados e complexos. Então, enquanto nós estivermos no Brasil, o crime de enriquecimento ilícito devidamente identificado como tal, como crime autônomo, nós dependemos - a polícia depende, o Ministério Público depende - para podermos ajuizar as ações, de todo esse aparato probatório que não pode ser demonizado e simplesmente desqualificado.

Discute-se isso nos meios mais elevados, de que existiria uma fascistização com essas histórias das escutas telefônicas, com o método, etc. Inclusive com as escutas legais. Mas há também uma contra-argumentação e que também seria uma coisa próxima dessa tese e muito mais ampla, a de que haveria uma enorme demanda da sociedade por justiça, não justiçamento, justiça elementar. Ninguém é preso, ninguém que tenha posses fica preso.
É evidente que não.

Por quê?
Mas não pode ficar preso. Enquanto a legislação processual brasileira for o que é, ninguém será condenado. Ninguém eu me refiro a criminosos que...

...tenham acesso a um bom escritório de advocacia.
Um bom escritório de advocacia não deixa que um processo penal chegue ao fim no Brasil em menos de 15 a 20 anos.

Então já era.
Já era. Evidente.

Assim fica mais fácil para um ministro conceder um habeas corpus porque ele nem estará lá mais quando chegar o caso, o mérito do caso para julgar.
(Risos) É, eu não quero entrar em detalhes.

Isso é só uma observação lateral.
Mas quero dizer, sim, com toda ênfase, que a legislação processual brasileira é a que tem o maior número de recursos e oferece as maiores possibilidades de chicana processual no mundo. Nós temos recursos herdados da velha legislação lusitana que nem em Portugal existem mais, eu posso dizer isso. Quem pode pagar os melhores escritórios de advocacia são exatamente os corruptos, então um processo contra eles não se conclui em menos de 20 anos. Portanto, o que acontece?

Se dissermos que 'No Brasil, corrupto rico não vai para a cadeia', estamos corretos?
Se vai não ficará preso. A única hipótese de prisão que existe no Brasil se chama prisão cautelar, prisão provisória, prisão temporária.Quero ressaltar que quando falo que os grandes não são punidos, refiro-me à punição pela via judicial, que é inviabilizada pelo excesso de recursos e incidentes processuais, conforme afirmei. Porque tudo aquilo que é possível fazer na instância administrativa, o Poder Executivo tem feito; basta ver quantos agentes públicos já pusemos para fora da Administração Federal em 5 anos e meio: mais de 1.800. E veja que não é só bagrinho não; são também diretores de estatais - como da ECT e da Infraero, por exemplo - são altos funcionários, como fiscais da Receita, procuradores federais, inclusive ocupantes de altos cargos de assessoria, subsecretários, superintendentes, etc. Ou seja, o Executivo está fazendo sua parte para acabar com a cultura da impunidade; falta agora o que depende do Congresso, que é aprovar leis de reforma do Processo Penal e do Processo Civil que realmente agilizem as ações judiciais; sem isso, não há juiz que consiga colocar um colarinho branco na cadeia.

Branco...
Além disso, iniciamos uma nova linha de ação, destinada a pegar, do outro lado do balcão, o empresário corrupto ou corruptor - são as declarações de inidoneidade de empresas, penalidade que a Administração pode também aplicar, independentemente da Justiça. Já aplicamos isso à Gautama, à Planam, Santa Maria, Klass, e Enir Rodrigues de Jesus EPP (nome da empresa), protagonistas dos escândalos da operação Navalha (a primeira) e das Sanguessugas (as demais). E temos vários outros processos em curso. Feito isso, a empresa fica proibida de contratar novamente com a Administração e de participar de licitações.

Aí o sujeito ficou um pouco desmoralizado ali e acabou.
Agradam à população, mas elas não podem permanecer por muito tempo. Pela sua própria natureza, elas são cautelares, elas só se justificam pelo tempo necessário à instrução do processo. E aí elas têm que sair para esperar a prisão definitiva.

E aí é um faz de conta...
Agora, eu fiquei muito feliz, muito feliz, porque pelo menos alguma coisa de bom tem que acontecer, com declarações que eu li do novo presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro César Rocha. Ele se manifesta preocupado com esse lado da questão, que é a agilidade, a celeridade da Justiça com valores que hoje são cobrados pela sociedade brasileira, ao contrário da simples preocupação em exacerbar os mecanismos de defesa, que foi o foco na Constituinte de 1988, porque o Brasil estava saindo de um período de ditadura. Então é natural que o foco ali, a preocupação maior, era contra o Estado forte, militar, todo-poderoso. Hoje, o foco é outro. Hoje a preocupação é com o crime, com a corrupção. É preciso uma Justiça mais ágil e mais eficaz. O presidente do STJ defende aquilo que eu defendo há muito tempo, ou seja...

Mudança no código processual.
É, mas antes disso até, de modo mais concreto: ele sustenta que a prisão deveria acontecer logo após a segunda decisão nas instâncias ordinárias. Ou seja: juiz de primeira instância condenou, e o tribunal confirmou... Acabou, tá preso. Ele poderá recorrer, mas recolhido à prisão, e não recorrer em liberdade, porque aí nunca vai preso.

Fonte: Terra Magazine

Nenhum comentário: