A ÓTICA DA VERDADE E UMA CAMPANHA DE VIDA
Já antes da lanterna do Diógenes se procurava a verdade nos recônditos mais sombrios. E apesar de todo o esforço da filosofia universal (geográfica e cronológica) nunca se a encontrou. Bastava um entusiasta grito de “- Eureka! Achei!”, para logo vir outro demonstrando não passar de mero tropeço.
Mesmo a religião, com todos seus absolutismos, vive dando trambolhões nas arestas de verdades que espalhou pelo chão da história. Querem ver? Leiam esta frase do Tomás de Aquino que, em parceira com o Agostinho, assina a autoria dos preceitos da mais poderosa delas: a católica: “A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos”.
Ou seja: fosse Tomás de Aquino um inquisidor, e o Ratzinger nestas alturas já estava frito.
Mas deixando a metafísica de lado, vamos ao mais material, ao factível e concreto. Pois também aí a verdade sempre escapa! Na física, por exemplo, tudo não foi tão aristotelicamente sacramentado (com aval clerical inclusive)? Apareceu um Galileu e deu um giro de 360°! De lá até Newton, despencaram-se muitas verdades abaixo, atraídas pelas irresistíveis forças inversas das massas.
Irresistíveis? Também um engano dos que acharam que com a gravidade newtoniana a verdade se manteria ali dependuradinha, eternidade afora. Tomaram-na na cabeça quando um descabelado com cara de maluco rabiscou displicente: E=mc2. Mais uma vez se foi a verdade para o espaço! E pra fechar a discussão, Einstein ainda arrematou: Algo só é impossível até que alguém duvide e acabe provando o contrário.
O pretensioso protagonista de um meu romance ainda complementa o gênio, afirmando que só o Nada é absoluto.
Mas o que é o Nada? Quando muitos imaginavam que a verdade do Nada estaria livre de especulações, lá vem um tal de Freud significar o que sempre pareceu não ser Nada.
A partir de então pelo menos poderíamos discutir e compreender tranquilamente nossos nadas. Uma ova! Não passou muito tempo para que Jungs, Reiches, e outros tantos, arrumassem divergentes significados para esses nadas a quem nunca se deu importância. Ou seja, meu personagem não está com a verdade, pois nem o Nada escapa da impossibilidade de uma verdade única, absoluta.
Em que pese o alto conceito tido por todos esses pensadores e cientistas citados, aprendi mais foi com um caboclo, amigo de velhos tempos, quando sem a menor pretensão me ensinou que mentira é tudo aquilo em que não se quer acreditar. Achando-me muito esperto, como o discípulo que quer constranger a sabedoria do mestre, perguntei pelo o que, então, seria a verdade. O caboclo olhou-me espantado pela minha estupidez: “- Ará! Verdade é aquilo que uncê quer acreditar, uai!”
Lógico! Que mais poderia ser!
Ainda esta semana lembrei-me da vergonha que passei por minha estupidez, naquele momento ribeirinho de há tantos anos atrás. Foi através de uma resposta ao meu comentário sobre a conclusão da jornalista(!!!!???) Lucia Hipólito, de que a seleção brasileira de futebol vai mal por causa do Presidente Lula e da Ministra Dilma Roussef.
Dei ao comentário o título de Brazilian Pitecantropos Médium e pode ser encontrado aqui, mas o interessante mesmo foi a resposta da correspondente:
Raul!
Pelo que percebo você definitivamente está em campanha. Posso dizer para você cuidado... Quando a gente crê demais em alguma coisa, nada do que os outros dizem nos parece verdade. Afinal você já decidiu qual a sua verdade.
Foi a busca e a definição da verdade absoluta que terminou com muita coisa há muito tempo atrás.... ou não foi?
Deveria ter lhe escrito apenas que se para a seleção brasileira ir bem, o país precisa ir tão mal quanto na gestão tucana, prefiro não termos de pagar as vitórias futebolísticas como campeões mundiais de dívidas externas, concentrações de renda, analfabetismo, desemprego, fome, estagnação, corrupção, abandono social, degradação de infra-estrutura básica, etc. Mas lembrando os ensinamentos do amigo caboclo, concluí que perderia meu tempo indo por esse atalho, e enveredei na besteira de tentar incentivá-la a avaliar sobre a improbabilidade de um colega britânico da Hipólito acusar a Rainha ou o Primeiro Ministro do país que inventou as regras do esporte por, há tanto tempo, não erguerem a taça do campeonato mundial de futebol.
Certamente troquei 6 por meia dúzia, pois conforme constatado por meu mestre caboclo qualquer relativização que eu proponha, será verdade absoluta se a empatia da correspondente assim o quiser. E não haverá Sócrates nem Platão que desvie o rumo desta rinocerontesca realidade.
No entanto, há nas considerações da missivista (que não lembro se conheço pessoalmente) uma afirmação sobre minha pessoa que estou plena e firmemente de acordo. Para que não me aconteça aqui, pela internet, o mesmo que ocorre com o PAC -- pois esta mesma correspondente que protesta contra o atual governo pelas péssimas condições das estradas brasileiras (sem se recordar que este governo ainda não completou 6 anos e que de uma rodovia se espera vida útil de no mínimo 10), certamente é uma das que acusam o PAC de eleitoreiro -- decidi-me divulgar alguns trechos de minha resposta, antes que mais alguém queira definir minha utilização da internet como meio de comunicação sobre o que penso, pelo fato de eu estar em campanha.
Além de manter o anonimato de minha correspondente pessoal, por questões óbvias, aprimorei os parágrafos reproduzidos, complementando com ponderações que naquele momento me faltaram.
Então, lá vai (com cacófato e tudo):
Que bom que você percebeu que estou em campanha. Pois estou em campanha há tantas décadas, que nem me lembro se alguma vez não estive em campanha.
Talvez minha primeira campanha tenha sido contra o patriarcalismo, o machismo, a dominação da mulher pelo homem. Era uma campanha doméstica.
Lá por volta de meus 14 anos, talvez um pouco antes, comecei a perceber algumas distorções entre grupos de pessoas que desperdiçavam privilégios não merecidos, e maiorias de pessoas marginalizadas por motivos fúteis: cor da pele, falta de condições financeiras, origens regionais ou sociais, e outros preconceitos. Entrei então, naquela época, em intensa campanha social. Em tudo o que escrevi, sempre que me manifestei, estive engajado nesta campanha por estes anos todos de minha vida.
Mais ou menos naquele período de meu início como campanhista, deu-se o golpe militar e a prepotência tornou-se a etiqueta de identificação de certa parcela da população brasileira, exercendo covarde arrogância sobre a grande maioria. Acirrei-me em minha campanha.
Daí sobreveio o AI - 5, a censura, o atentado a liberdade de expressão, aos direitos civis. E então, não teve mais jeito, mantive-me na campanha contra tudo e todos que representavam o totalitarismo, a intolerância.
Quando anunciaram o acordo MEC/USAID, eu era estudante secundarista e participei firme na campanha contra a degradação da educação brasileira. Apanhei muito por causa disso e, infelizmente, o acordo aconteceu jogando nosso país para um dos mais baixos níveis educacionais do mundo.
Como cada vez mais se agravava os desníveis sociais e a miserabilização do trabalhador brasileiro, aprofundei-me em minha campanha. Por essa razão tive de me exilar. Sem condições de fazê-lo no exterior, fui para Salvador, onde continuei sobrevivendo como publicitário, mas sempre fazendo minha campanha humanista e voluntária, tanto na literatura quanto no jornalismo.
E tive de continuar fugindo. Da Bahia para Recife, de lá para Fortaleza. E assim fui conhecendo a verdade de nossa gente, de nosso povo brasileiro, pelo qual estou em permanente campanha.
Do nordeste fui para o centro-oeste. No final da década de 70 fui para o Rio de Janeiro, ainda em campanha, mas através de uma linguagem nova para mim: a cinematografia. Claro que não tive qualquer sucesso, pois se a ditadura já não admitia minhas outras expressões de campanha, muito menos as admitiria multiplicando-se pelas telas. Até porque a obra que me debutaria nessa linguagem, satirizava o exército brasileiro, então patrono do regime vigente, contra o qual se voltava minha campanha.
Voltei para o Mato Grosso onde entrei em campanha indigenista, o que me custou o emprego. Bom emprego: bem remunerado, status de autoridade, secretárias e assessores, motoristas, passagem de avião e estadia para qualquer parte do país. Mas eu estava em campanha! Já que o governo decidira não mais financiar minha campanha contra ele, não pude continuá-la com a mesma eficiência, mas ainda assim me mantive em campanha. Até porque nessas alturas a ditadura já se evidenciava tão nociva ao país quanto sempre demonstrei em minhas campanhas.
Por então já se decompor, dessa vez a ditadura não me perseguiu além da mera demissão do emprego.
A coisa aqui no Brasil ficou meio morna, estilo chove não molha, aquela coisa de indefinição própria de transferência de regime. Aproveitando um prêmio literário que me levou ao Chile, por lá entrei em campanha contra o Pinochet. Coisa pouca, mas deu num livro de poesia: A Cabeça de Pinochet. Do Chile atravessei para a Argentina e de lá para o Uruguai. Os amigos diziam que eu estava maluco. Não estava maluco! Eu só estava em campanha.
Depois quis descansar e fui morar no litoral norte do estado de São Paulo, mas aí comecei a me preocupar também com a ecologia do planeta, além de que os outros problemas que motivavam minhas tantas campanhas continuavam inalterados e nada mudara com o fim da ditadura. Então, embora não mais quisesse, tive de continuar em campanha contra o meu pai e os machistas em geral, contra as elites, a fome, os poderosos todos que afetavam inclusive a saúde do meu mais recente cavalo de batalha: o meio ambiente.
Daí veio o governo Lula, e como ele atende a praticamente todas, ou quase todas, as reivindicações de minhas campanhas, cogitei a possibilidade de me depor da condição de eterno campanhista para me dedicar as artes de galanteria: escrever sobre as belezas das moças, as sutilidades da natureza, os prazeres do viver, as graças sempre contidas em elementos concretos ou abstratos, reais ou ficciosos. Mas sobrevieram os facciosos, como Lúcia Hipólito, ameaçando as conquistas de minhas campanhas.
Evidente que não pretendo arrogar às minhas campanhas a responsabilidade pela ascensão de 40 milhões de brasileiros da situação de miserabilidade, nem o fato de atingirmos hoje o recorde histórico de 30 milhões de empregos em carteira assinada. Muito menos nossa independência econômica externa, a reformulação de nossa infra-estrutura em cada estado, nossa respeitabilidade internacional e o resgate da dignidade de tantos grupos humanos outrora marginalizados por diversidades regionais, culturais ou étnicas. Claro que minhas campanhas muito pouco influíram nisso tudo, mas de qualquer forma, por menor que tenha sido a participação, não posso deixar de reconhecer que fui um dos tantos que ao longo desses anos se mantiveram diariamente em campanha para que atingíssemos a realidade que hoje vivemos.
Já que estes resultados estão sendo ameaçados por aqueles responsáveis pela situação do passado, contra a qual passei a vida fazendo campanha, seria uma absurda estupidez de minha parte abandonar a campanha de defesa do que acredito e se comprova por toda a imprensa internacional. Exceto a brasileira, mas como a brasileira sempre defendeu o que ataquei em minhas campanhas, não tenho motivo algum para acreditar que essa imprensa tenha algum compromisso com qualquer verdade. Nunca tive!
No entanto, ao longo dessas 4 décadas provou-se que tudo aquilo que prevíramos -- desde lá no início, quando nos engajamos (eu e meus companheiros que são muitos no Brasil e no mundo) em nossa campanha contra o sistema político vigente -- resultou mesmo na degradação humana que tanto alertamos: um dos mais baixos índices educacionais do mundo, um dos maiores índices de violência urbana, dependência econômica, o país internacionalmente apontado como nação dos mais escandalosos desníveis econômicos da história, prática de escravidão humana, um dos maiores contingentes de famintos do planeta, dos que registravam mais agudos casos de subnutrição coletiva, etc., etc., etc.
Essas verdades não são minhas. Não fui eu que as decidi. Essa verdade estava nas páginas dos principais órgãos da imprensa internacional e qualquer um pode consultá-las, provavelmente também pela internet.
Agora, ninguém se mantém muito tempo em campanha, apenas pelas verdades da imprensa. Muito menos pelas alusões e mentiras rasteiras dos interesses imediatos de uma imprensa tendenciosa. Impossível! Para tornar sua vida útil à maioria de seus semelhantes e a sobrevivência de seu planeta, independentemente do grupo étnico ou social de que provenha, é necessário se conhecer muitas verdades.
As verdades de acadêmicos, cientistas, pesquisadores e filósofos de todas as escolas. É preciso conhecer a verdade de todos os que exigiram de seus conhecimentos e sentimentos uma doação à espécie humana, incluindo os artistas, pensadores, escritores, artistas plásticos, cineastas, inclusive jornalistas, mas os de verdade, que exercem a profissão isentos de outro interesses que não sejam os relativos as suas funções.
Verdades que em todos os tempos e lugares, de oriente a ocidente, em todos os séculos, superaram interesses imediatos por privilégios individuais ou de grupos específicos e insensíveis as necessidades e carências da maioria dos seres humanos.
É preciso conhecer a história dessa humanidade, e daqueles que por ela se dedicaram. E conhecendo estas tantas verdades, se percebe quantas e quantas vezes elas se divergem entre si. E quantas vezes têm de ser revistas, repensadas, reavaliadas de acordo com o momento e o espaço onde se desenvolve, onde se aplica.
Para viver nessa campanha em que me meti desde criança, tive de, sobretudo, aprender a verdade de minha gente. Muita gente, e muitas verdades.
E agora, reescrevendo esta mensagem, me ocorre que só há uma verdade tristemente absoluta: a da ignorância do indivíduo sobre sua própria condição humana. Não há maior absolutismo do que o da crença do indivíduo que considera a importância de seus privilégios superior às carências e necessidades de seus semelhantes. Nada é tão absoluto quanto a mentira do indivíduo que se mente como superior aos demais de sua espécie.
Sinceramente, até lamento concluir que a única verdade absoluta a ser apontada com isenção de tendências, nessa conversa, é a da condição intelectual e da ausência de percepção de Dona Lucia Hipólito. Pois fosse qual fosse o governo, mesmo que o da ditadura ou tucano, conferir o desempenho sofrível de uma equipe de futebol ou de seu técnico a qualquer governo, é muito mais sofrível desempenho de bom senso mínimo necessário para um profissional de comunicação. Situação lastimável e vergonhosa tanto para a classe profissional, quanto para os consumidores de informações jornalísticas. Isso jamais havia visto ocorrer entre colegas de outros países, e reafirma minha crença de que, mesmo não sendo absolutas, as tantas verdades em que acredito são incomparáveis às mentiras da imprensa nacional. Portanto, minha campanha segue!
Raul Longo
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