18 junho 2008

A Vírgula da Desinformação

A campanha dos 100 anos da ABI (Associação Brasileira da Imprensa) mereceu uma resposta a altura do nosso grande Raul Longo.


Campanha da ABI

A vírgula pode ser uma pausa... ou não.
Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro.
23,4.
2,34.

Pode ser autoritária.
Aceito, obrigado.
Aceito obrigado.

Pode criar heróis.
Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

E vilões.
Esse, juiz, é corrupto.
Esse juiz é corrupto.

Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.

Uma vírgula muda tudo.


ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação'.


A resposta de Raul Longo

Como publicitário, concordo. A campanha é mesmo bem bolada.
Mas como jornalista, tenho muito a lamentar. Primeiro porque ela é extemporânea. A idéia teria exato sentido nos tempos em que, presidida pelo grande Barbosa Lima Sobrinho, a ABI lutou pela liberdade de imprensa contra a censura imposta tanto pela ditadura Vargas, quanto pela ditadura militar.
Hoje, na informação que nos é passada, ninguém mexe mesmo uma vírgula. E não tem mais sentido a ABI se anunciar como defensora de uma liberdade a que nada nem ninguém ameaça. O atual presidente e dirigentes do órgão, estão cantando o ovo posto por seus antecessores.
Acontece, que liberdade de informação não se faz apenas combatendo à censura. Também se defende a liberdade de informação, combatendo a má versão dos fatos, e a mentira. Tanto quanto a censura, a informação mentirosa também impede a liberdade de imprensa.
Todos os países que preservam a liberdade de imprensa, como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e França, possuem um órgão federativo que preserva a atividade jornalística da manipulação de interesses contrários aos que são informados pelos veículos de comunicação. Órgãos que mantêm a ética informativa, coibindo o desrespeito ao público.
Vocês se recordam de ter ouvido falar de quando o cineasta, então radialista, Orson Welles criou enorme pânico na população de Nova Iorque, anunciando uma invasão de marcianos?
Evidentemente, aquilo era uma ficção, ainda que anunciada como notícia factual, mas por ingenuidade da população nova-iorquina ou pelo realismo interpretativo de Welles, o efeito nos cidadãos da então maior cidade do mundo foi assombroso, e o comunicador conseguiu comprovar sua tese de que a imprensa poderia manipular a emoção das massas como bem pretendesse.
Aqui no Brasil, o decantado Roberto Marinho jactou-se de ter repetido o feito de Welles para a equipe da inglesa BBC em um documentário que você pode baixar pela internet: "Além de Cidadão Kane".
Cidadão Kane foi o primeiro e mais importante filme de Orson Welles, onde reproduziu a vida de um magnata da imprensa norte-americana de então.
Pois no documentário, a BBC demonstra como no Brasil o sistema político do regime ditatorial militar, possibilitou à nossa imprensa o desenvolvimento de homens ainda mais poderosos do que Randolph Hearst, o magnata da imprensa norte-americana retratado por Welles.
E é nosso próprio Hearst, que orgulhoso de seu poder além do de Cidadão Kane, declara no documentário aos ingleses, se referindo a Collor de Melo: "Nós o pusemos, nós o tiramos".
Welles não sofreu qualquer sanção do governo norte-americano por ter produzido Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, em Portugal). Pelo contrário, o filme se tornou um clássico do cinema internacional. Mas o Conselho de Jornalismo norte-americano exigiu de Welles uma retratação pública, além de pesada multa pelo transmissão radiofônica de A Guerra dos Mundos, pois anunciara, como notícia, uma inverdade.
Pois aqui no Brasil, apesar de a ditadura e a censura, então, já terem findado uma década antes, Roberto Marinho conseguiu proibir a exibição deste documentário, que nunca foi as salas de circuito comercial. Mas se você digitar o título pelo Google, poderá baixá-lo e assistir pelo seu computador.
Nessa época, o respeitado jornalista e intelectual Barbosa Lima Sobrinho, como presidente da ABI, mais uma vez insistiu pela criação do Conselho Federal de Imprensa brasileiro, lembrando ser a única forma de se coibir o abuso do poder de comunicação em defesa dos interesses de empresários como Roberto Marinho, Frias, Civita, Mesquita e outros.
Além da penalização pela A Guerra dos Mundos, Welles também foi investigado pelo FBI. Quando reclamou dizendo que a liberdade de imprensa estava sendo coibida pelo governo norte-americano, o então diretor do FBI, Edgar Hoover, declarou que em nome da liberdade de imprensa não se pode admitir que ludibriem as pessoas pondo em risco a segurança nacional e o bem estar dos cidadãos do país.
Veja você! Um mero programa de rádio!
A mim, parece exagero. Mas não me parece exagero que Roberto Marinho tenha declarado orgulhoso de seu poder: "Nós o pusemos, nós o tiramos".
Não parece exagero, porque infelizmente foi exatamente o que fizeram, manipulando a informação transmitida à população brasileira. Em um ano eles transformaram o obscuro e desconhecido governador do estado de Alagoas, em heróico caçador de marajás. Nos fizeram votar em um caçador de marajás, como se não fossem eles, os marajás, que o financiassem.
E quando esse produto a que nos condicionaram, não correspondeu com as pretensões de seus patrocinadores, mais uma vez nos manipularam para que o derrubássemos.
A ABI, com Barbosa Lima Sobrinho à frente, muito influiu pelo impeachment de Collor, mas para induzir a juventude a sair às ruas de cara-pintada, a Globo produziu o seriado Anos Dourados, exaltando os movimentos estudantis dos quais participei. Mas lembro muito bem que naqueles nossos anos nada dourados, a Globo informava a opinião pública que éramos subversivos.
Eu, e todos os que então foram às ruas para protestar nos expondo à violência da repressão militar, lembramos muito bem que entre outras palavras de ordem contra a ditadura e seus representantes, gritávamos em coro: "- Fora Globo que o povo não é bobo!". Mas, evidentemente, isso não foi mostrado em Anos Dourados.
Em português, isso se distingue pela palavra hipocrisia.
E é para que exista real liberdade de imprensa, que os países e a imprensa que a preserva, como ABI de Barbosa Lima Sobrinho, apóiam os Conselhos Nacionais de Jornalismo.
Essa ABI que hoje está na mão dos Marinhos, Civitas, Frias e Mesquitas, hipocritamente convenceu a opinião pública brasileira que a criação de um Conselho de Jornalismo significaria a volta da censura. Como, se esse Conselho seria não apenas mais uma arma em defesa da liberdade de imprensa, mas também um órgão de manutenção da responsabilidade de imprensa?
Deve-se saber que para existir liberdade, em qualquer situação, é preciso coexistir a responsabilidade.
Não sei se vocês estão ao par, mas nos países onde realmente existe liberdade de imprensa, não é permitido propriedade de mais de um tipo de veículo de comunicação. Por exemplo: os donos da CBN não podem ter um jornal ou revista impressa. Da mesma forma que o Times ou o Washington Post não têm emissoras de rádio ou TV.
O mesmo ocorre com o Le Monde, ou com a BBC. Ocorre isso exatamente para que seja preservada a liberdade e diversidade de opinião, o que vocês também consideram enriquecedor, não é?
Infelizmente, no Brasil, não usufruímos desse enriquecimento, pois os formadores de opinião no Brasil são apenas algumas oligarquias hegemônicas: Marinhos, Civitas, Mesquitas, Frias. Impossível liberdade onde o que há é um feudo de imprensa.
Hipocritamente chamam de direito de liberdade, o que em qualquer lugar do mundo se entende por condicionamento da opinião pública.
Então, essa campanha da ABI, apesar de bem bolada, não me parece legal não. Me parece sim, é ilegal. Ilegal porque não corresponde a realidade. E não corresponde a realidade porque a atual ABI não respeitou os anseios e recomendações do mais significativo presidente da entidade em seus 100 anos de história, indo contra o Conselho de Jornalismo proposto pelo atual governo.
Além do Collor de Melo, há muitas outras e bem mais recentes demonstrações do quão necessário ainda se faz um órgão desse aqui no Brasil, para coibir que irresponsavelmente se divulgue pelo Estado de São Paulo uma acusação de Denise Abreu, que ela própria desmente em depoimento ao Senado. Para coibir que irresponsavelmente a revista Veja divulgue a existência de um dossiê contra um partido, para depois se constatar que o dossiê foi elaborado através de informações confidenciais roubadas pelo próprio partido que se dizia alvo do suposto dossiê. Para coibir que uma pseudo-jornalista, irresponsavelmente, provoque pânico na população inventando, pela Folha de São Paulo, uma inexistente epidemia. Também promovida pela Globo, a falsa epidemia inventada pela irresponsabilidade da imprensa provocou mais casos de intoxicação, e até de falecimento, por desnecessária ingestão de vacina, do que reais ocorrências da doença.
Então, essa campanha da ABI, e a própria ABI, apesar de ser uma boa idéia publicitária, não tem qualquer respaldo de legalidade, pois liberdade sem responsabilidade não é legal em qualquer lugar do mundo. Nem é liberdade. É crime.

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