A inversão dos sentidos no jornalismo brasileiro
O programa do governo Lula para a comunicação, bem abrangente e detalhado, nunca foi publicado na íntegra pela grande imprensa. Usaram alguns pedaços de frases, tirando-os do seu contexto, eliminaram detalhes significativos, inventaram expressões que não existem. Com que propósito?
Bernardo Kucinski
Um estudo de caso
Grande reportagem na Folha de S.Paulo da última quarta-feira (1) abriu com a revelação de que, “dois dias após a reeleição” de Lula, o PT divulgou “discretamente” no seu site o programa do presidente para “democratizar os meios de comunicação” (1). Já começou com duas mentirinhas. O programa estava no site do PT desde o sábado, véspera da eleição. E com grande destaque. Por que essas duas mentirinhas? E por que abrir a reportagem com informações que, mesmo verdadeiras, seriam acessórias? Posso aventar duas hipóteses. Primeiro, para reapresentar, como se fosse novidade, algo já noticiado. O mesmo repórter deu essa mesma “notícia” dois meses antes. Segundo, para passar a idéia de que o PT sonegou do eleitor uma informação que era essencial para ele decidir o voto, só a revelando depois da reeleição. Uma espécie de estelionato eleitoral.
Quase em seguida, outra mentirinha. A reportagem diz que ficou de fora da versão final do programa a exigência para que outorgas e renovações de concessões de rádio e televisão passem pelo crivo de ‘conselhos populares’, expressão colocada entre aspas para que não fique nenhuma dúvida. Mas o programa do PT nunca usou essa expressão, nem mesmo no texto prévio submetido à aprovação política do comitê de campanha. Foi o jornalista quem a inventou, na sua primeira reportagem em agosto.
Mais adiante, uma série de pequenas supressões altera o sentido da proposta do PT de apoio à imprensa escrita independente. O programa propõe “incentivos legais e econômicos visando ao barateamento dos custos de produção e distribuição, que permitiriam a diminuição do preço de venda, para aumentar o número de leitores no país”. O repórter omitiu a expressão “valorização da mídia impressa” do início da frase, omitiu os mecanismos propostos (barateamento de custos e de distribuição) e o objetivo geral de “aumentar o número de leitores”. E ainda acrescentou que esses jornais e revistas teriam apoio de bancos públicos e agências de fomento, proposta que está em outro lugar, bem diferente do programa, quando se discute a necessidade de dar prioridade na economia brasileira à indústria de produção de bens simbólicos, apenas reforçando o que já é uma postura desses bancos de dessas agências de fomento de priorizar a produção regional e a democratização desde muito antes do governo Lula (2).
O resultado desse conjunto de pequenas omissões e deslocamentos foi inverter o sentido de que se trata de uma política pública de aplicação universal e com o objetivo democratizante para o seu oposto: de que o PT pretende usar bancos públicos para favorecer certos jornais e revistas. A diferença fica clara neste parágrafo da proposta, que o repórter também omitiu: “As iniciativas aqui propostas podem ser aplicadas para os meios privados, públicos e estatais, sempre tomando como diretriz norteadora que o surgimento do maior número possível de produtores deve atender à democratização do acesso da sociedade aos meios de comunicação”.
Pequenos erros e omissões fazem parte de toda narrativa jornalística. São inerentes ao ato de informar rapidamente. Se forem erros graves, devem ser corrigidos de imediato. Nesta história do programa setorial do PT de Comunicação e Democracia, o importante é o processo todo pelo qual uma proposta bastante ampla, detalhada, que tem o objetivo de descobrir caminhos democráticos de tornar mais plural e acessível a informação no Brasil, foi deformada pelos próprios jornalistas e tratada como uma proposta autoritária e tentativa de controle dos meios de comunicação.
O primeiro ato desse processo que consegui localizar partiu da própria Folha em furo de reportagem em 28/08/06 (3). A matéria teve enorme repercussão, sendo reproduzida em dezenas de sites que tratam de mídia. Tornou-se a referência desse tema na grande imprensa. Essa reportagem já fazia o deslocamento que associa estritamente à mídia impressa a proposta do PT de fomento por agências e bancos públicos ao conjunto da indústria de produção de bens simbólicos para a democratização e regionalização da produção (4). E mais: no último parágrafo, introduzia a palavra maldita que marcaria todo o tratamento da questão, inclusive por jornalistas ilustres e mais experientes, e que não constava da proposta: “A população terá ‘participação’ no processo de renovação e outorga das concessões da rádio e TV por meio de conselhos populares”.
Foi ima uma colagem de conceitos diferentes. O PT propõe um modelo de participação popular parecido ao SUS, com base em conferências municipais, estaduais e uma conferência nacional, como já está sendo feito pelo movimento ambientalista, entre outros. Dessas conferências nascem conselhos. Exatamente como ocorre no SUS, cujos conselhos participam na definição de políticas da saúde.
Depois de propor as conferências, logo em seguida o texto fala: “Criação de mecanismos e espaços institucionais (como conselhos) para a participação popular na elaboração, acompanhamento e fiscalização de políticas públicas”. O repórter fez uma clonagem: juntou o “popular” de “participação popular” (título desse capítulo do Programa) com a palavra conselho (que está relacionada às conferências, podendo ser, portanto, conselhos municipais, estaduais, etc).
No dia seguinte (5), um repórter do Estadão em Brasília foi atrás do prejuízo provocado pelo furo da Folha e cozinhou as mesmas informações, aproveitando para mais uma forçada de barra: o que na proposta original era “participação popular no processo de definição de políticas públicas” virou “conselhos populares com o poder de decidir sobre outorgas”. Ou seja, “participação” no processo virou “poder de decisão”.
E também acrescentou outra mentirinha: “esse modelo foi pensado pelo então Secretário de Comunicação de governo, Luiz Gushiken, logo depois da posse, mas foi abandonado por Lula”. O que Gushiken propôs foi uma política pública vinculando programas de patrocínio de entidades do governo a compromissos de inclusão social. Essa proposta, como se sabe, gerou atritos com o Ministério da Cultura e foi abandonada do ponto de vista formal, apesar de seus princípios estarem sendo cada vez mais adotados de modo voluntário por essas entidades e até pelo setor privado.
Três dias depois, o tema foi abordado por outro jornalista do Estadão (6), que já começou forçando outra barra. Diz que o autor do programa é Fábio Koleski, “um dos principais assessores de Dulci, ministro que é o único sobrevivente do chamado núcleo duro”. Nem Koleski é um dos principais assessores de Dulci e nem Dulci tinha qualquer coisa a ver com a proposta. Koleski explicou que apenas sistematizou as propostas oriundas de grupos de trabalho do PT e que Dulci não tinha nada com isso. O jornalista simplesmente desclassificou suas explicações. Elas não se encaixavam em alguma teoria sua.
Mas Fábio falava a pura verdade. Tanto a referência a Gushiken como esta ao Dulci eram incorretas. Por que foram inventadas? Talvez para forçar uma vinculação das propostas ao governo. Sei que foram inventadas porque eu fui o autor de parte das propostas e nem estava mais no governo; a responsabilidade política pelo grupo de trabalho para comunicação era de Valter Pomar, que não estava no governo; seu âmbito era o do comitê de campanha e não o governo; suas divergências eram entre diferentes tendências do partido e não entre grupos de governo.
No mesmo dia, um importante colunista do Estadão (7), talvez sem saber que as informações distorciam fortemente os fatos, elogiou a reportagem de seu jornal no Observatório da Imprensa, ironicamente um espaço dedicado à crítica da mídia e sua auto-reflexão. Nesse processo, a expressão que nunca existiu – “conselhos populares” – ganha uma dimensão maior e vira “assembléias populares para revisão de concessões de rádio e TV”. É o PT propondo o regime dos soviets ou algo parecido.
Moral da história. A proposta, que é bem abrangente e, em algumas áreas, bem detalhada, e em outras, trata de questões de grande atualidade, como a modelagem da TV digital, nunca foi publicada pela grande imprensa na íntegra, ou mesmo resumidamente. Apenas usaram alguns pedaços de frases, tirando-os do seu contexto. Eliminaram detalhes significativos, inventaram expressões que não existem. Com que propósito? Se fosse para debatê-la, criticá-la a sério, não seriam necessários esses truques. Desconfio que a proposta vai ter o mesmo tratamento dado pela grande imprensa à da criação do CFJ (Conselho Federal de Jornalismo) e da Ancinav (Agência Nacional do Audiovisual). Ou seja, será desqualificada a priori, para que seu mérito não seja discutido.
E ainda dizem que é o PT que tem DNA autoritário. Pode ser que tenha, mas não é sua exclusividade.
(1) A reportagem, de Fábio Zanini, ganhou título de página inteira: “Plano do PT quer ‘desconcentrar’ a mídia”.
(2) Tanto a União como Estados, municípios, grandes empresas e bancos estatais possuem há décadas leis de incentivo à produção independente de bens simbólicos.
(3) Fabio Zanini. "PT propõe recadastramento de concessões da rádio e TV" - Folha On Line.
(4) “... Quanto à mídia impressa. O governo definiria um plano de incentivos econômicos – com apoio inclusive de bancos públicos e agências de fomento...”.
(5) João Domingos. "Texto deve omitir ‘democratização da mídia'”. O Estado de S.Paulo, 29/08/06.
(6) Paulo Moreira Leite. "Texto sobre controle da mídia é criação de assessor de Dulci". O Estado de S. Paulo, 01/09/06.
(7) Luiz Weiss. "De onde vem o plano do PT para a mídia". Observatório da Imprensa, Ano 11. 01/09/2006.
Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é editor-associado da Carta Maior. É autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro”.
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