Durante recente entrevista com a jornalista Miriam Leitão, o apresentador Jô Soares aproveitou para fazer mais um comentário preconceituoso contra o presidente Lula. Foi aplaudido pela platéia de paulistas classe média, mas recebeu uma resposta ''sociológica'' e contundente neste artigo de Eduardo Lauande, que se reproduz abaixo.
No último dia 7 de novembro, o apresentador Jô Soares entrevistou em seu programa a jornalista de economia Miriam Leitão. Durante a entrevista, Miriam falou da história de vida de seu pai, natural de Garanhuns (PE), mesma cidade onde nasceu o presidente Lula. A partir da informação de que o pai da jornalista ''era analfabeto, depois se tornou professor e venceu na vida'', Jô Soares comentou, de forma preconceituosa, o fato do presidente Lula não ter conseguido fazer o mesmo. Como era de se esperar de um público composto majoritariamente por pessoas da classe média paulista, a platéia interrompeu a entrevista para aplaudir o absurdo falado por Jô Soares. Mas até a própria entrevistada, Miriam Leitão, ficou visivelmente constrangida. Na entrevista seguinte, com a cantora Baby Consuelo, foi Jô quem ficou sem graça quando teve que ouvir de Baby que o ''presidente Lula é um homem iluminado e deu a volta por cima''.
Em artigo que circula pela internet, o cientista social paraense, Eduardo Lauande, resolveu destrinchar o fugaz episódio, por trás do qual, avalia ele, esconde-se todo um cabedal de conceitos políticos e ideológicos alimentados pela elite. ''As elites brasileiras, dentro de uma perspectiva sociológica, evitam expressar verbalmente o que entendem ser preconceito. Mas o fato é que “os brancos e os letrados” como bem avaliava Sérgio Buarque continuam tendo acesso privilegiado às oportunidades sociais e também convidam à reflexão sobre os limites das concepções que vêem o preconceito apenas como resultado de atitudes e atos individuais, sem atentar para a dinâmica estrutural que extrapola essa dimensão individual'', afirma Lauande.
Confira abaixo a íntegra do artigo:
Eduardo Lauande – Cientista Social
Eu tenho asco contra as pessoas que pautam suas vidas pelo preconceito. Mas antes de desenvolver meu raciocínio, vou começar com uma história. Anteontem [07.11.06] eu assistia o Jô Soares. Ele entrevistava a jornalista global Miriam Leitão. Gostei da história de vida dessa mineira, ex-militante do PCdoB e presa política em 1972. Lá pelas tantas, Mirian Leitão falava do seu pai que “era analfabeto, depois se tornou professor e venceu na vida”. Jô, todo atento, replicou de forma desconexa ao assunto: “Quem dera que um cidadão de Garanhuns tivesse conseguido isso”. O que mais me assustou é que a platéia bateu palmas pela intervenção do Jô. Minha esposa Débora, de imediato, disse: “Isso é muito preconceito!!!”. Jô estava, é claro, mencionando o presidente Lula. Não acredito que o Jô seja um preconceituoso de marca maior ou menor. Acontece que sua atitude foi preconceituosa.
Vejamos.
Lula não tem um cabedal acadêmico ou de eloqüência literária, mas é um sujeito extremamente inteligente. Com uma agilidade de intelecto fora do comum. Eu lembro que Antônio Gramsci ao dizer que “todos nós, seres humanos, somos filósofos” demonstrou que um intelectual orgânico pode ser uma liderança sem erudição acadêmica, mas sua inteligência reside no vigor de seu comando político. Assim eu indago: Lula não é um intelectual orgânico?
Ou posso perguntar de outras maneiras: o que é vencer na vida? É ter nível superior? A refutação que faço é dizer que Lula não tem nível superior, mas foi fundador do hoje maior partido de esquerda da América Latina e quiçá um dos maiores do mundo. Lula presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo dos Campos. Liderou greves no tempo do arbítrio. Foi deputado federal e hoje é presidente reeleito. Eu por princípios metodológicos evito comparações, mas nesse caso será que o presidente Lula, diante dos parâmetros preconceituosos do Jô, não venceu na vida? O Jô, por espécime, não tem nível superior. E aí? O Jô não venceu na vida?
Acontece o seguinte, as elites brasileiras, dentro de uma perspectiva sociológica, evitam expressar verbalmente o que entendem ser preconceito. Mas o fato é que “os brancos e os letrados” como bem avaliava Sérgio Buarque continuam tendo acesso privilegiado às oportunidades sociais e também convidam à reflexão sobre os limites das concepções que vêem o preconceito apenas como resultado de atitudes e atos individuais, sem atentar para a dinâmica estrutural que extrapola essa dimensão individual. Em termos de políticas, a questão que imediatamente se coloca é que embora seja necessário o compromisso individual com a recusa do preconceito e da discriminação esse compromisso não é suficiente para alterar a estrutura preconceitualmente desigual da sociedade brasileira. Por isso se eu tivesse que responder pelo Lula, se ele venceu ou não na vida, eu responderia, mesmo entre tantas réplicas e fora do estudo das elites, pela sua atuação em favor da melhoria da educação neste país.
Começaria assim.
Há um aspecto – que eu creio que nós devemos insistir sempre –, que faz falta no mundo de hoje, que é o aspecto da tolerância, do respeito à diversidade. Se o mundo de hoje é um mundo que tem um lado preocupante é o da intolerância. E essa intolerância, geralmente, se apresenta sob a forma do preconceito. Vê-se, hoje, países com grande desenvolvimento econômico que também são injustos. Não têm, talvez, o lado da injustiça social nossa, mais gritante, que é essa desigualdade baseada na distribuição de renda, mas nem por isso deixam de ser injustos, porque estão voltando a ser preconceituosos e a valorizarem a exclusividade de um grupo econômico e racial.
Parece que este país, finalmente, despertou para o problema das minorias sociais e a necessidade de sua inserção nas práticas da cidadania. É a dívida histórica, que já dura 500 anos e precisa começar a ser paga, sob pena de não se chegar aos mínimos padrões da prática de uma aceitável democracia. E é exatamente, no mais apropriado dos campos, o da educação, que o movimento, por assim dizer redentorista, está tendo início e o Lula venceu na vida porque enquanto liderança franqueou o debate, como também, criou e ampliou conquistas. E sua forma jurídica, entre outras, se reveste da figura das cotas, para assegurar a essas minorias, a dos negros, a dos índios e a dos pobres (se é que a pobreza brasileira pode ser havida por minoritária!) o direito de matricular-se nas universidades.
Lula aí novamente venceu na vida porque ele pautou dois projetos de lei que lastreiam essas medidas: um, voltado para o ensino superior privado o ProUni (Programa Universidade para Todos), e outro, um texto a ser aprovado pelo Congresso Nacional, instituindo cotas de ingresso de alunos nos estabelecimentos de ensino superior federais. Assim Lula venceu na vida porque sua política educacional de governo baseia-se clara e definitivamente nessa idéia das cotas preferenciais para a matrícula de negros, índios e pobres (todos egressos das escolas públicas do ensino básico), nos estabelecimentos de educação superior, sejam privados, sejam federais (as universidades estaduais e municipais aderirão à prática, se assim decidirem, em razão da autonomia de que gozam). Eu visitei o site do MEC e percebi que o comprometimento com esses princípios é tal que o próprio texto do anteprojeto de reforma universitária proclama, no art. 53 § 1º. “Os programas de ação afirmativa e inclusão social (das instituições federais de ensino superior) deverão considerar a promoção das condições acadêmicas de estudantes egressos do ensino médio público, especialmente afrodescendentes e indígenas”.
E Lula venceu na vida porque o ProUni está em pleno vigor: as faculdades privadas que aderirem ao programa trocarão bolsas por perdão de tributos e assim preencherão cotas destinadas às referidas minorias. E, quanto ao projeto sobre a reserva de 50% das vagas de todos os cursos universitários federais para egressos do ensino médio oficial, nesse percentual incluídas as cotas de negros e índios, ainda vai dar muito pano para a manga nas discussões que se travarão no Congresso Nacional. Se me pedissem a opinião sobre essa matéria tão polêmica quão atual, eu não me furtaria a dizer que tenho em boa conta a instituição de uma política de cotas para a inclusão de grupos sociais mais carentes nos cursos superiores. E nisso estou em ótima companhia, eis que Noberto Bobbio, a quem ninguém pode acusar de antidemocrático ou de transgressor da lei, também nos seus escritos se mostrou favorável a tal política. Para estabelecer a igualdade de oportunidades entre desiguais, no ponto de partida é, por vezes, mister estatuir, na lei, a necessidade de distribuições desiguais de benefícios. “Por isso”, diz ele, “os programas head start, conquanto, intrinsecamente inigualitários, são extrinsecamente igualitários, já que conduzem a um nivelamento das oportunidades de instrução”.
Por fim o Lula venceu derradeiramente na vida porque em Garanhuns, nos anos 60 do século passado, umas das poucas coisas para “crescer” era ser retirante para trabalhar de peão na construção civil ou ser metalúrgico em São Paulo e lá quem sabe “vencer na vida”. E hoje Lula pode dizer, com apenas a sua 4ª série do ensino primário (hoje ensino fundamental) que venceu no Brasil. Convenhamos: que vitória!!!
No último dia 7 de novembro, o apresentador Jô Soares entrevistou em seu programa a jornalista de economia Miriam Leitão. Durante a entrevista, Miriam falou da história de vida de seu pai, natural de Garanhuns (PE), mesma cidade onde nasceu o presidente Lula. A partir da informação de que o pai da jornalista ''era analfabeto, depois se tornou professor e venceu na vida'', Jô Soares comentou, de forma preconceituosa, o fato do presidente Lula não ter conseguido fazer o mesmo. Como era de se esperar de um público composto majoritariamente por pessoas da classe média paulista, a platéia interrompeu a entrevista para aplaudir o absurdo falado por Jô Soares. Mas até a própria entrevistada, Miriam Leitão, ficou visivelmente constrangida. Na entrevista seguinte, com a cantora Baby Consuelo, foi Jô quem ficou sem graça quando teve que ouvir de Baby que o ''presidente Lula é um homem iluminado e deu a volta por cima''.
Em artigo que circula pela internet, o cientista social paraense, Eduardo Lauande, resolveu destrinchar o fugaz episódio, por trás do qual, avalia ele, esconde-se todo um cabedal de conceitos políticos e ideológicos alimentados pela elite. ''As elites brasileiras, dentro de uma perspectiva sociológica, evitam expressar verbalmente o que entendem ser preconceito. Mas o fato é que “os brancos e os letrados” como bem avaliava Sérgio Buarque continuam tendo acesso privilegiado às oportunidades sociais e também convidam à reflexão sobre os limites das concepções que vêem o preconceito apenas como resultado de atitudes e atos individuais, sem atentar para a dinâmica estrutural que extrapola essa dimensão individual'', afirma Lauande.
Confira abaixo a íntegra do artigo:
Eduardo Lauande – Cientista Social
Eu tenho asco contra as pessoas que pautam suas vidas pelo preconceito. Mas antes de desenvolver meu raciocínio, vou começar com uma história. Anteontem [07.11.06] eu assistia o Jô Soares. Ele entrevistava a jornalista global Miriam Leitão. Gostei da história de vida dessa mineira, ex-militante do PCdoB e presa política em 1972. Lá pelas tantas, Mirian Leitão falava do seu pai que “era analfabeto, depois se tornou professor e venceu na vida”. Jô, todo atento, replicou de forma desconexa ao assunto: “Quem dera que um cidadão de Garanhuns tivesse conseguido isso”. O que mais me assustou é que a platéia bateu palmas pela intervenção do Jô. Minha esposa Débora, de imediato, disse: “Isso é muito preconceito!!!”. Jô estava, é claro, mencionando o presidente Lula. Não acredito que o Jô seja um preconceituoso de marca maior ou menor. Acontece que sua atitude foi preconceituosa.
Vejamos.
Lula não tem um cabedal acadêmico ou de eloqüência literária, mas é um sujeito extremamente inteligente. Com uma agilidade de intelecto fora do comum. Eu lembro que Antônio Gramsci ao dizer que “todos nós, seres humanos, somos filósofos” demonstrou que um intelectual orgânico pode ser uma liderança sem erudição acadêmica, mas sua inteligência reside no vigor de seu comando político. Assim eu indago: Lula não é um intelectual orgânico?
Ou posso perguntar de outras maneiras: o que é vencer na vida? É ter nível superior? A refutação que faço é dizer que Lula não tem nível superior, mas foi fundador do hoje maior partido de esquerda da América Latina e quiçá um dos maiores do mundo. Lula presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo dos Campos. Liderou greves no tempo do arbítrio. Foi deputado federal e hoje é presidente reeleito. Eu por princípios metodológicos evito comparações, mas nesse caso será que o presidente Lula, diante dos parâmetros preconceituosos do Jô, não venceu na vida? O Jô, por espécime, não tem nível superior. E aí? O Jô não venceu na vida?
Acontece o seguinte, as elites brasileiras, dentro de uma perspectiva sociológica, evitam expressar verbalmente o que entendem ser preconceito. Mas o fato é que “os brancos e os letrados” como bem avaliava Sérgio Buarque continuam tendo acesso privilegiado às oportunidades sociais e também convidam à reflexão sobre os limites das concepções que vêem o preconceito apenas como resultado de atitudes e atos individuais, sem atentar para a dinâmica estrutural que extrapola essa dimensão individual. Em termos de políticas, a questão que imediatamente se coloca é que embora seja necessário o compromisso individual com a recusa do preconceito e da discriminação esse compromisso não é suficiente para alterar a estrutura preconceitualmente desigual da sociedade brasileira. Por isso se eu tivesse que responder pelo Lula, se ele venceu ou não na vida, eu responderia, mesmo entre tantas réplicas e fora do estudo das elites, pela sua atuação em favor da melhoria da educação neste país.
Começaria assim.
Há um aspecto – que eu creio que nós devemos insistir sempre –, que faz falta no mundo de hoje, que é o aspecto da tolerância, do respeito à diversidade. Se o mundo de hoje é um mundo que tem um lado preocupante é o da intolerância. E essa intolerância, geralmente, se apresenta sob a forma do preconceito. Vê-se, hoje, países com grande desenvolvimento econômico que também são injustos. Não têm, talvez, o lado da injustiça social nossa, mais gritante, que é essa desigualdade baseada na distribuição de renda, mas nem por isso deixam de ser injustos, porque estão voltando a ser preconceituosos e a valorizarem a exclusividade de um grupo econômico e racial.
Parece que este país, finalmente, despertou para o problema das minorias sociais e a necessidade de sua inserção nas práticas da cidadania. É a dívida histórica, que já dura 500 anos e precisa começar a ser paga, sob pena de não se chegar aos mínimos padrões da prática de uma aceitável democracia. E é exatamente, no mais apropriado dos campos, o da educação, que o movimento, por assim dizer redentorista, está tendo início e o Lula venceu na vida porque enquanto liderança franqueou o debate, como também, criou e ampliou conquistas. E sua forma jurídica, entre outras, se reveste da figura das cotas, para assegurar a essas minorias, a dos negros, a dos índios e a dos pobres (se é que a pobreza brasileira pode ser havida por minoritária!) o direito de matricular-se nas universidades.
Lula aí novamente venceu na vida porque ele pautou dois projetos de lei que lastreiam essas medidas: um, voltado para o ensino superior privado o ProUni (Programa Universidade para Todos), e outro, um texto a ser aprovado pelo Congresso Nacional, instituindo cotas de ingresso de alunos nos estabelecimentos de ensino superior federais. Assim Lula venceu na vida porque sua política educacional de governo baseia-se clara e definitivamente nessa idéia das cotas preferenciais para a matrícula de negros, índios e pobres (todos egressos das escolas públicas do ensino básico), nos estabelecimentos de educação superior, sejam privados, sejam federais (as universidades estaduais e municipais aderirão à prática, se assim decidirem, em razão da autonomia de que gozam). Eu visitei o site do MEC e percebi que o comprometimento com esses princípios é tal que o próprio texto do anteprojeto de reforma universitária proclama, no art. 53 § 1º. “Os programas de ação afirmativa e inclusão social (das instituições federais de ensino superior) deverão considerar a promoção das condições acadêmicas de estudantes egressos do ensino médio público, especialmente afrodescendentes e indígenas”.
E Lula venceu na vida porque o ProUni está em pleno vigor: as faculdades privadas que aderirem ao programa trocarão bolsas por perdão de tributos e assim preencherão cotas destinadas às referidas minorias. E, quanto ao projeto sobre a reserva de 50% das vagas de todos os cursos universitários federais para egressos do ensino médio oficial, nesse percentual incluídas as cotas de negros e índios, ainda vai dar muito pano para a manga nas discussões que se travarão no Congresso Nacional. Se me pedissem a opinião sobre essa matéria tão polêmica quão atual, eu não me furtaria a dizer que tenho em boa conta a instituição de uma política de cotas para a inclusão de grupos sociais mais carentes nos cursos superiores. E nisso estou em ótima companhia, eis que Noberto Bobbio, a quem ninguém pode acusar de antidemocrático ou de transgressor da lei, também nos seus escritos se mostrou favorável a tal política. Para estabelecer a igualdade de oportunidades entre desiguais, no ponto de partida é, por vezes, mister estatuir, na lei, a necessidade de distribuições desiguais de benefícios. “Por isso”, diz ele, “os programas head start, conquanto, intrinsecamente inigualitários, são extrinsecamente igualitários, já que conduzem a um nivelamento das oportunidades de instrução”.
Por fim o Lula venceu derradeiramente na vida porque em Garanhuns, nos anos 60 do século passado, umas das poucas coisas para “crescer” era ser retirante para trabalhar de peão na construção civil ou ser metalúrgico em São Paulo e lá quem sabe “vencer na vida”. E hoje Lula pode dizer, com apenas a sua 4ª série do ensino primário (hoje ensino fundamental) que venceu no Brasil. Convenhamos: que vitória!!!
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