24 outubro 2006

Jogo Perigoso


Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo

Como se sentiria um cidadão quando soubesse que iria ser acusado ou julgado por um procurador ou um juiz ligado a um partido ou investigado por um delegado ligado a outro partido?
A tentativa de manipular o Ministério Público, ou a Polícia Federal, ou os Tribunais para atingir objetivos eleitorais e eleitoreiros é o mais recente episódio da trama "A derrocada das instituições". Não é de hoje que as disputas políticas e eleitorais têm sido marcadas pela tentativa de partidos políticos - sem exceção - de usar os órgãos do Estado para atingir os adversários.
A "partidarização" ou a particularização da atividade policial e da prestação da justiça aproxima rapidamente as sociedades modernas das práticas totalitárias que assolaram o mundo dito civilizado na primeira metade do século XX. É o que demonstram Herbert Marcuse e Franz Neumann em suas obras sobre o tema. A invasão insidiosa dos interesses partidários nos órgãos encarregados de vigiar e punir não tem outro resultado senão transformar essas burocracias de Estado, primeiro em instrumentos do poder descontrolado e, depois, em poderes fora de controle. Não são poucos os que percebem o fenômeno e o abominam, mas preferem se recolher diante da contundência e da ousadia dos que buscam, sem qualquer escrúpulo, intimidar os inimigos, desafetos ou simples adversários políticos.
Para juntar ofensa à injúria, as relações promíscuas entre burocracias de Estado e a mídia colocam os cidadãos brasileiros diante da pior das incertezas: a absoluta imprecisão dos limites da legalidade. As garantias da publicidade do procedimento legal são, na verdade, uma defesa do cidadão acusado - e ainda inocente - contra os arcanos do poder, sobretudo do poder não-eleito. Pois estas conquistas da consciência jurídica moderna, das quais não se pode abrir mão, são pisoteadas por quem deveria defendê-las.
Os senhores da mídia, ao recrutar a conivência de funcionários da justiça para seus bons propósitos, tecem a corda com que enforcarão os princípios que afirmam defender. As ações atrabiliárias de autoridades seduzidas pelos frêmitos e cintilações da "sociedade do espetáculo" açulam o imaginário da populaça que delira com o festival de detenções ilegais, a prodigalidade na concessão de prisões temporárias, para, mais tarde, se decepcionar com as freqüentes revelações da insubsistência das acusações.
Na "nova ordem", a incontinência do particularismo se esgueira por dentro do sistema legal, sob o pretexto de que se deve "fazer justiça" ou submeter os ricos às mesmas truculências que massacram os pobres. Sempre imaginei - santa ingenuidade - que as batalhas do século XX tivessem, finalmente, estendido os direitos civis e políticos, conquistas das "democracias burguesas", a todos os cidadãos. Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva, ainda que não revolucionária: a construção da República dos Mais Desiguais. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade nativa, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina pluto-buromidiática movida pela "tirania das boas intenções". Um sistema em que bons meninos exibem sua retidão moral para praticar crueldades em nome da justiça.
O colapso do direito e da eticidade do Estado no buraco negro do moralismo particularista e exibicionista é responsável por dois fenômenos gêmeos, funestos para a ordem democrática: a degradação da política e a busca de heróis vingadores, encarregados de limpar a cidade (ou o país), ainda que isto custe a devastação das garantias individuais. Nesta cruzada antidemocrática, militam os que querem "aparelhar" os agentes do Estado, os parlamentares que invocam bons propósitos para justificar a violação do decoro parlamentar, os procuradores que fazem gravações clandestinas ou inventam provas, os burocratas que desrespeitam sistematicamente as decisões judiciais e os jornalistas que, em nome de uma "boa causa", tentam manipular e ludibriar a opinião pública.
O poder que justifica sua origem na virtude auto-alegada, típico do mandonismo arcaico miscigenou-se à nova sociabilidade, ao mesmo tempo libertária e transgressora do mercado e dos negócios. A Santa Aliança dos novos tempos executa a censura, o assassinato moral e a difamação do "outro" sob o impulso da permissividade desbragada, subtraindo o debate público dos cânones da civilidade. Na ausência de remédios legais, o exercício reiterado da infâmia só pode ser contido pelo revide violento, também desprovido de quaisquer limites , já que os escribas-moralistas de plantão se vangloriam de desrespeitar todos os padrões de moralidade.
Tal corrupção do espaço público, da ágora moderna constituída pelos meios de comunicação, tem origem na neutralidade proclamada que esconde as legítimas e óbvias preferências de classe e de partido. Essa ocultação, coadjuvada pela partidarização reacionária das burocracias de Estado, promove o estreitamento do âmbito democrático. Isto culmina, quase sempre, na extradição da lutas sociais e econômicas, constitutivas do capitalismo em qualquer de suas etapas, para além do território vigiado e protegido precariamente pela lei. Desterrar o conflito social para fora da esfera pública e colocá-lo à margem da ordem jurídica certamente fará irromper na sociedade de massas pobre e empobrecida a verdadeira face da política: a oposição amigo/inimigo, uma oposição real irredutível, que não pode ser "superada", mas apenas pacificada provisoriamente pelo veredicto da soberania popular, fonte do poder constitucional, cuja função sistêmica é manter os protagonistas do conflito na irrealidade da vida "normal".

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular aposentado da Unicamp, consultor editorial da revista Carta Capital e vencedor do prêmio Juca Pato em 2005.

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