19 outubro 2006

A mídia e os novos cães de guarda



Neste fim de semana, Veja fez uma nova denúncia. A Carta Capital também. Maioria da mídia escolheu repercutir a primeira. Comportamento da mídia brasileira no processo eleitoral atualiza reflexão de Serge Halimi, autor do livro “Os novos cães de guarda”. Segundo ele, a “censura é mais eficaz quando não tem necessidade de se manifestar, quando os interesses do patrão, miraculosamente, coincidem com os da “informação”.

Marco Aurélio Weissheimer - Carta Maior

Recentes episódios da vida política brasileira sugerem a leitura de um pequeno livro do francês Serge Halimi, articulista do jornal Le Monde Diplomatique e professor na Universidade Paris VIII. Em “Os novos cães de guarda” (publicado no Brasil pela Vozes), Halimi fala sobre a imprensa francesa, mas sua análise pode ser ampliada, com algumas adaptações, para falar do comportamento da mídia em outros países, entre eles o Brasil. Qualquer semelhança não é mera coincidência. O autor descreve como a imprensa escrita e audiovisual francesa está dominada por “um jornalismo de reverência, por grupos industriais e financeiros, por redes de conivência”. “Um pequeno grupo de jornalistas onipresentes, cujo poder é encoberto pela lei do silêncio, impõe sua definição da informação-mercadoria a uma profissão cada vez mais fragilizada pela ameaça do desemprego”. Esses profissionais, sustenta Halimi, são os “novos cães de guarda do sistema econômico vencedor e do pensamento único”.

A referência aos “cães de guarda” remonta ao ano de 1932, quando Paul Nizan escreveu um pequeno ensaio, Les chiens de garde, para denunciar os filósofos que dissimulavam seus compromissos políticos sob “um amontoado de grandes conceitos”. “Em nossos dias”, escreve Halimi, “os simuladores dispõem, com mais freqüência, de uma maquiadora e um microfone do que uma cátedra”. “Encenadores da realidade social e política, externa e interna, acabam por deformá-la. Estão ao serviço dos donos do mundo. São os novos cães de guarda”, afirma. Os argumentos que Halimi apresenta em seu texto desmontam a tese de que a imprensa hoje constituiria um quarto poder, um contra-poder vigilante do poder. Pelo contrário, os grandes grupos midiáticos integram e sustentam o grande poder econômico, são braços operativos do grande capital e seu comportamento editorial está subordinado a isso. Não é exatamente uma novidade, mas nunca é demais lembrar deste “detalhe”.

Pensando como o patrão
Halimi lembra um texto escrito em 1927 por Julian Benda, denunciando a “vontade do escritor pragmático de agradar à burguesia que faz as reputações e concede as honrarias”. E descreve assim o comportamento de poderosos jornalistas franceses: “os jornalistas influentes gostam de chamar a atenção para suas façanhas. Quando os artigos, revelações, retratos e entrevistas se tornam raros, eles pegam na caneta, colocam-se em cena com ternura, narram suas conquistas e dissabores, os segredos que os Grandes deste mundo lhes confiaram e suas raras jornadas de aventura e de guerra numa vida tranqüila e caseira”. Esse comportamento, acrescenta o articulista do Le Monde Diplomatique, anda de mãos dadas com um novo tipo de censura, muito mais eficaz do que aquela praticada em regimes explicitamente autoritários. O uso do advérbio aqui é necessário, pois, se a avaliação de Halimi é correta, estamos vivendo sob um novo modelo de autoritarismo.

Ele descreve assim a lógica desse novo modelo: “A censura é mais eficaz quando não tem necessidade de se manifestar, quando os interesses do patrão, miraculosamente, coincidem com os da “informação”. Nesse caso, o jornalista fica prodigiosamente livre. E sente-se feliz. Como bonificação, concedem-lhe o direito de acreditar que é poderoso. Eufóricos com a brecha de um muro de Berlim que se abre para a liberdade e o mercado, soldadinhos deslumbrados pela armada americana que, por helicóptero, transporta para o Golfo Pérsico a guerra ‘cirúrgica’ e os cruzados do Ocidente, grandes advogados da Europa monetária no momento do referendo sobre Maastricht: repórteres e comentaristas recebem carta branca para expressar seu entusiasmo e poder”. Neste mundo, prossegue Halimi, “o jornalista deixou de ter qualquer autonomia” e só lhe resta “a possibilidade de exibir diante de seus confrades um ‘furo’ que provaria seus restos de poder”.

A mídia como uma das faces do poder
Há fartos exemplos desse tipo de atitude no comportamento recente de importantes setores da mídia brasileira. Em sua edição desta semana, a revista Carta Capital publicou matéria de capa denunciando a atuação de alguns veículos no episódio do dossiê. O jornalista Raymundo Pereira descreve o submundo da trama que teria sido armada por um delegado da Polícia Federal, em conluio com alguns dos principais veículos de comunicação do país – entre eles a TV Globo e os jornais Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo – para prejudicar o PT e a candidatura de Lula às vésperas do primeiro turno. Ele conta em detalhes como os meios de comunicação omitiram as informações de como o delegado Edmilson Pereira Bruno obteve e repassou, aos próprios jornalistas, as fotos do dinheiro apreendido com duas pessoas ligadas ao PT num hotel de São Paulo. Bruno chegou a confessar sua ação criminosa aos repórteres, afirmando que iria forjar um roubo para justificar o fato de a imprensa estar de posse das imagens. Os jornalistas silenciaram sobre a confissão de um crime. Tudo em nome de um “furo”.

Ao comentar esse tipo de atitude, o diretor da Carta Capital, Mino Carta, escreveu em seu blog:

“Sempre e sempre, a mídia nativa serviu o poder, salvo raras e honrosas exceções. Faz sentido, ela é uma das faces do próprio. Nunca, no entanto, a não ser há mais de quatro décadas, na preparação do golpe de 1964, e na campanha de 1989 a favor do caçador de marajás, a mídia nativa assumiu de forma tão desbragada o papel de partido político. Já disse neste espaço, e volto a repetir: só falta convocar a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. A desfaçatez, a hipocrisia, a má fé estão a ser exibidas em triunfo. A reportagem de capa da Veja desta semana, sobre os pretensos esforços do ministro Marcio Thomaz Bastos para "blindar" Lula no caso dossiê, é uma aula de jornalismo às avessas (...). Veja justifica a reunião urgente das lideranças tucanas, prontas a uma investigação sobre o assunto, embora ali não haja uma única escassa prova de opiniões apresentadas como sacrossanta verdade. Quem sabe jornalistas e políticos do PSDB estejam em perfeita sintonia. Assim como o tucanato conta com solertes informantes dentro da Polícia Federal. De outra maneira, como explicar que as equipes de Alckmin e Serra tenham chegado ao prédio da PF antes dos jornalistas, dia 15 de setembro, quando foram presos Valdebran Padilha e Gedimar Passos?”.

Um lembrete de Chomsky
Nesta segunda-feira, a maioria da grande imprensa repercutiu a nova “denúncia” de Veja, pautando jornalistas e colunistas com o tema. Sobre a matéria da Carta Capital, um grande silêncio, com honrosas exceções, como os textos escritos por Luis Nassif e Paulo Henrique Amorim. Para Nassif, a matéria da Carta Capital, “é uma aula de jornalismo sobre o antijornalismo que parece ter tomado definitivamente conta da mídia”. Na mesma direção, Amorim afirmou que a matéria demonstra de forma irrefutável que um golpe de Estado, com a participação ativa da mídia, levou a eleição para o segundo turno. Ele lista alguns dos movimentos desse golpe: as equipes de campanha de Alckmin e de Serra chegaram ao prédio da Polícia Federal, em São Paulo, antes dos presos Valdebran Padilha e Gedimar Passos; o delegado Edmilson Bruno tirou fotos do dinheiro de forma ilegal e a distribuiu a jornalistas da Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, do jornal O Globo e da rádio Jovem Pan; o delegado Bruno contou com a cumplicidade dos jornalistas para fazer de conta que as fotos tinham sido roubadas dele; no dia 29, dois dias antes da eleição, dia em que caiu o avião da Gol e morreram 154 pessoas, o Jornal Nacional omitiu a informação e se dedicou à cobertura da foto do dinheiro.

Os jornalistas envolvidos em tais episódio rejeitam categoricamente essas afirmações e garantem estar exercendo o seu trabalho de modo autônomo e independente. Talvez alguns até acreditem nisso, o que reforça a reflexão de Halimi sobre a nova forma de censura, onde os interesses do patrão e de seus empregados coincidem. Halimi lembra uma história que Chomsky gosta de repetir e que explica porque não é preciso recorrer a uma teoria da conspiração para falar das atuais perversões midiáticas. Um dia, um estudante americano perguntou a Chomsky: “Gostaria de saber como a elite consegue controlar a mídia? Ele replica: Como é que ela controla a General Motors? A pergunta não tem razão de ser. A elite não precisa controlar a General Motors uma vez que é sua proprietária”.

O resultado desse processo, conclui Halimi: meios de comunicação de massa cada vez mais presentes, jornalistas cada vez mais dóceis, uma informação cada vez mais medíocre. Como foi dito acima, qualquer semelhança com o cenário midiático brasileiro não é mera coincidência.

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