26 outubro 2006

Poder da internet no Brasil foi desconhecido por analistas políticos


O documentário A Revolução não será Televisionada, sobre o golpe contra Hugo Chávez por líderes da oposição, com o apoio explícito de emissoras de televisão e apoio tácito dos Estados Unidos é imperdível.

Deixa clara a manipulação de imagens e informação com objetivos políticos de uma forma nunca antes registrada na História. Só vendo para acreditar.

No Brasil, às vésperas da eleição, o juiz supremo delas, Marco Aurélio de Mello, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, compara o escândalo do dossiê ao de Watergate, aquele que derrubou Richard Nixon.
Fica implícito, pela declaração, que a crise brasileira pode tomar o mesmo rumo. Quando isso sai da boca do encarregado de arbitrar as eleições é de arrepiar.

No campo da mídia, comentaristas idiotas dizem não entender porque, apesar de tantos escândalos, Lula pode ser reeleito ainda no primeiro turno. São idiotas no sentido literal da palavra, que era usada na Grécia antiga para se referir àqueles que se preocupavam essencialmente consigo mesmos e ignoravam os interesses da comunidade. Os que ficavam de fora da polis eram chamados de idiotas. Isolados, faltava a eles capacidade de analisar e debater questões públicas e políticas. Pensei nos idiotas gregos quando notei a surpresa de nossos analistas com a resistência de Lula ao bombardeio dos escândalos.

Ainda não foi desta vez, escreveu um blogueiro. Ele anunciava o resultado de um levantamento indicando vitória do presidente-candidato em primeiro turno - mesmo depois de novas denúncias, que essencialmente transformaram os tucanos em vítimas de um complô petista.

Será que essa gente não sabe votar? - deve se perguntar o blogueiro.

Escribas de aluguel e jornalistas que sentem no ar para que lado sopram os ventos patronais dizem que se Lula vencer será com os votos dos grotões. Usam a palavra de forma pejorativa, como se o voto dos eleitores da periferia e do interior do Brasil valesse menos que os da classe média supostamente bem informada.
Eu me sinto à vontade para escrever sobre o atual governo: investiguei e denunciei integrantes dele e tive uma discussão com o presidente, ao lado de outros jornalistas, durante a visita de Lula à República Dominicana.
Mas o trabalho de um jornalista deve ser guiado pela imparcialidade.
A pior coisa que um repórter pode fazer é trombar com os fatos.
Nossos analistas ainda não se deram conta de que aplicam um modelito anos 60 para analisar um país que, para o bem e para o mal, é outro.

Em vez de trocar de povo, devemos trocar de analistas. Eles parecem escrever uns para os outros, como se pudessem pautar, da marginal do Tietê, a conversa no bar de uma esquina de Rondonópolis, Agudos ou Barreirinha. Franklin Martins chegou perto de entender o novo Brasil em recente entrevista à revista Caros Amigos, ao dizer que os tradicionais formadores de opinião não formam mais opinião no Brasil. Ele usou o exemplo da pedra no lago para explicar como o processo se dava no País: a partir da classe média, a opinião se difundia em ondas concêntricas, até atingir o povão.
Segundo Franklin, as ondas agora batem num dique e voltam: a classe C tem seus próprios interesses a defender - e já percebeu que eles nem sempre coincidem com os dos moradores do andar de cima, na definição de Elio Gaspari.

Houve um tempo em que o Rio de Janeiro, nossa gloriosa ex-Capital, era considerado a caixa de ressonância do Brasil. Nada de importante acontecia no País sem antes passar por Ipanema ou Leblon. Mais recentemente, pelo Jardim Botânico. A supremacia econômica paulista pôs fim à hegemonia carioca e o território que nos deu a Bossa Nova foi loteado entre o Comando Vermelho e políticos provincianos. O que se desfaz agora é a hegemonia midiática do eixo Rio-São Paulo - no linguajar dos acadêmicos da USP.

Não precisei consultar um deles para descobrir. Consultei meu guru político, o Cebolinha, editor de imagens da TV Globo de São Paulo. Ele teve paciência de Jó para acessar, na internet, os sites dos jornais mais importantes das cidades médias brasileiras. Fez uma descoberta simples: eles não tem dado tanto espaço e destaque à crise do dossiê quanto a mídia dos pretensos centros de irradiação da opinião brasileira, situados no eixo Rio-São Paulo. É uma faceta bastante simplória de um fenômeno que deveria aparecer no radar de nossos analistas, se eles se dessem ao trabalho de desviar o olhar, um pouco que fosse, para além do próprio umbigo.

Lembram do sonho de Juscelino, de interiorizar o Brasil com a construção de Brasília? Pois é, ainda que nem todos tenham notado, aconteceu. Pedro Bial, em reportagem para o Jornal Nacional, esteve lá, na cidade que surgiu do nada por conta do agronegócio.

Aconteceu, amigos: dá para atravessar o Brasil de Santa Maria a Imperatriz, sem passar pela costa. E existe vida neste Brasil interiorano, ainda que haja mais correspondentes da mídia brasileira em Nova York do que em Manaus. Se eu tivesse tempo, dinheiro e menos o que fazer, gostaria de submeter nossos comentaristas políticos a um breve questionário:
1. Qual foi a ocasião mais recente em que o senhor ou senhora usou transporte público? (Não vale o metrô de Paris);
2. Quando foi a sua mais recente visita a Dourados, em Mato Grosso do Sul?
3. Já esteve em Campo Grande ou Goiânia?
4. Foi recentemente a Parelheiros?
5. O senhor ou senhora já entrou numa lan house? Sabe o que é isso?

Com exceção da primeira pergunta, que é pura provocação, as demais fornecem pistas para desvendar o que não é necessariamente um crime: o Brasil costeiro morreu. E já vai tarde. Sejam benvindos a um país mais complexo, em que o poder dos coronéis locais, montados em suas concessões de emissoras de rádio e tevê, se esgarça nas franjas. Se você não sabe o que é uma lan house, nem foi a Parelheiros, não se sinta um idiota - no sentido grego da palavra. Lan house é internet de pobre. Um real por hora. Está lá, em todo bairro pobre de toda cidade brasileira. É na lan house que a periferia orkuta; que joga aqueles videogames em que o sangue jorra; que imprime currículos em busca de empregos inexistentes; que baixa o vídeo da Cicarelli. Em resumo, é na lan house que a periferia faz ligação direta no ônibus que nossos comentaristas supõem dirigir.

E, porque estive lá, descobri em Parelheiros o que talvez seja a classe C a que se referiu Franklin Martins. A classe média sem água e esgoto. A mais completa tradução da Belíndia, das Bélgicas e Índias que se fundem no Brasil: carro usado na garagem, máquina de lavar, videogame, dvd, internet discada, ligação clandestina de água, bacias para recolher água de chuva, fossa e água de chuveiro desembocando direto na rua.

Lá o eleitor conversa enquanto o telejornal está no ar, comenta os diálogos da novela, vai na lan house procurar emprego e conversar pelo messenger. Os estudantes dão copy e paste para fazer trabalhos de escola. Estejam certos de que os eleitores de lá não obedecem ao andar de cima. Então o Lula pode ser reeleito com os votos de revolucionários da periferia? Pelo contrário, ele terá os votos dos conservadores, no sentido literal da palavra. E o que estes eleitores querem conservar?
A tênue ascensão social que tiveram nos últimos quatro anos está expressa no grande crescimento das vendas da linha branca de eletrodomésticos e no espetacular crescimento do número de aparelhos de telefonia celular no Brasil. Ou alguém acha que as Casas Bahia se tornaram um fenômeno por causa da freguesia dos Jardins paulistanos ou da Barra da Tijuca? Na periferia das grandes metrópoles existe um movimento silencioso e não organizado que responde pela sigla de MCL, o Movimento Conservador de Lula.

Eleitores para os quais a perda de um emprego ou uma doença na família significa mergulhar de novo abaixo da linha da pobreza. Quando os eleitores de Paralheiros se juntam para fazer política, é para pedir água, creche, escola. Não dá para trazer asfalto? Faz pelo menos o meio-fio. No Brasil, só as ambulâncias são mais superfaturadas do que os marqueteiros. Duda Mendonça, vendedor de enciclopédias, fez fortuna às custas da ignorância dos políticos. Eles se merecem. Tanto quanto nossos veneráveis comentaristas, os gênios do marketing eleitoral brasileiro aplicam idéias belgas em nossa Índia. Eles ainda se imaginam no Brasil costeiro, lançando idéias continentais para um país que agora é local.

Toda política é local, diz o ditado.
Nunca foi tão verdadeiro. Agora, o que é bom para Campo Grande pode não servir para Goiânia.
Existem mercados e interesses econômicos locais. Sabem o que me contou o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo? Que as montadoras fugiram do ABC em busca de isenção fiscal e mão-de-obra mais barata. E o que aconteceu? Os metalúrgicos do Paraná, de Minas Gerais e da Bahia estão cada vez mais próximos de obter salários equivalentes aos do ABC. Qual o impacto econômico e político regional deste fenômeno? A maior rede de material de construção de Mato Grosso é de um empresário tosco e simpático que conheci em Nova York, que sentia saudade de arroz-feijão depois de três dias em Manhattan. O homem vai se tornar um fenômeno estudado pela Harvard Business School antes de ser descoberto pela mídia brasileira.
No cartão pessoal dele, além de nome e telefone, está escrita a meta de vendas que pretende atingir no ano.

Fez fortuna na rebarba do agronegócio. O mesmo agronegócio que exibe sua cara perversa ao avançar sobre o sul da Amazônia, devastando o cerrado e a floresta tropical para plantar gado e soja. Em todo o Centro-Oeste, milhões de brasileiros foram beneficiados direta ou indiretamente pelo sucesso do agronegócio e uma boa parte deles vai votar em Lula. Em Dourados, Mato Grosso do Sul, índios pedem esmola nas ruas mas os fazendeiros andam de carro importado, a classe média compra aparelhos de tevê de tela plana e os remediados compram rádio, bicicleta e dvd. O Wal Mart está chegando a esse novo Brasil. Vai ser interessante - talvez trágico - assistir ao confronto dele com as bodegas de esquina.

O Blockbuster vem em seguida. Vai detonar o videoclube que faz fiado?

Emprestando a imagem de Franklin Martins, eu faria um reparo. Não é que as ondas causadas pela pedra no lago atinjam o dique da classe C e refluam. É que não somos mais apenas um grande lago, onde ALGUNS POUCOS atiram pedras. Somos milhares de lagos, onde MILHARES atiram pedras - usando o You Tube, a rádio local, o jornal de bairro, a tradição oral do interior - expressa nas conversas de bar e no bate-papo das calçadas.
A falta de compreensão deste fenômeno deixa os gestores da grande mídia no escuro.

Já aconteceu de algum integrante do MST aparecer na TV sem ser chamado de bandido, arruaceiro ou baderneiro? Qual foi a última longa entrevista de um líder do MST em uma emissora de tevê, de rádio, em um jornal? Será que eles vão seqüestrar repórter para sair no jornal? Claro que não - vão fazer seu próprio jornal.

Milhões de integrantes de movimentos sociais organizados vão votar em Lula porque se enxergam nele ou, pelo menos, por considerá-lo o candidato menos ruim. Essa gente não é representada adeqüadamente na mídia do eixo Rio-São Paulo. Jornalistas, profissionais de classe média, em geral procuram suas fontes onde é mais fácil encontrá-las: na academia, em representantes de entidades que defendem interesses corporativos e nas assessorias de imprensa. Elas ganham para plantar entrevistados no rádio, nos jornais e na tevê.
É só ter o cuidado de fazer uma pesquisa: quantos centímetros de jornal e minutos de televisão são ocupados por analistas do mercado financeiro, profissionais liberais e especialistas de todo gênero?

Por que essas pessoas, em geral de classe média, expressariam na mídia os interesses da periferia, dos pequenos agricultores ou dos operários de chão de fábrica?

Por que a CUT decidiu criar seu próprio programa de rádio e de televisão? Por que a Força Sindical segue o mesmo caminho? O Brasil de Parelheiros vai aparecer na tevê a não ser em casos de chacina? O Jornalismo, que um dia foi tratado como serviço público, agora vende notícia como produto.
De um lado, a independência financeira dá às empresas maior liberdade de manobra diante das forças políticas.
De outro, Parelheiros é sub-representada no conteúdo porque não vivem lá os consumidores tradicionais de notícia. Os sem-terra não valem um tostão como notícia, a não ser quando mostram o que a elite quer ver neles: arruaça e banditismo.

Durante sua primeira campanha eleitoral, nos Estados Unidos, Bill Clinton mandou pendurar no comitê de campanha uma placa com os dizeres: "It's the economy, stupid". É a economia, estúpido. Uma forma de lembrá-lo de que americano vota com o bolso. Não deveria ser novidade para ninguém: brasileiro também vota com o bolso.

Nossos comentaristas se entregaram, nos últimos meses, a desqüalificar os programas de transferência de renda.

Os programas foram atacados como assistencialistas, fruto do populismo de um presidente pai dos pobres.
É um jogo de palavras para desqüalificar os votos dos nordestinos, uma maneira indireta de expressar o preconceito - essencialmente paulista e carioca - contra os retirantes, os cabeça-chata, os pau-de-arara, os paraíbas. Pode se discutir o mérito dos programas sociais e, como demonstrou o jornalista Ali Kamel no livro Não Somos Racistas, pode se argüir que seria mais inteligente investir em educação básica de qualidade para todos.
Mas não se deve esquecer que aqui também se manifestam interesses de classe: a elite paulistana não quer que o dinheiro de seus impostos seja investido com aquela baianada preguiçosa - até hoje proibida de usar os elevadores sociais nos edifícios chiques de Higienópolis, Moema e Itaim.

Descabida ou não, a transferência de renda turbinou o comércio das pequenas cidades nordestinas.

Serão milhões de votos para conservar Lula. Portanto, quando algum comentarista disser que não entende como o presidente pode ser reeleito - apesar de todos os escândalos - ou é incompetente ou está a serviço de alguma campanha. É ardiloso desqüalificar os eleitores de Lula, como se eles não soubessem votar, como se fossem mal informados ou ignorantes.

Luiz Carlos Azenha - Jornalista

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