21 outubro 2006

Para conhecermos melhor quem é ACM


Entrevista com João Falcão

Bob Fernandes e Maria Falcão

Quando começou a briga entre você e o ACM, o cerco ao Jornal da Bahia e por quê?
João Falcão - Quando o Antônio Carlos foi indicado prefeito de Salvador, em 1967, o Jornal da Bahia deu uma boa cobertura à Prefeitura, que estava realmente realizando uma boa administração, como teria dado a qualquer outro prefeito. Essa era a linha do jornal. Nós tivemos uma aproximação por iniciativa dele. Não tínhamos relações pessoais antes. Tivemos uma boa aproximação porque ele, quando tem interesse, é uma pessoa agradável, comunicativa. Enfim, era uma amizade muito bem construída, porque ele tem realmente essa capacidade de fazer amigos e influenciar pessoas. Era como ele dizia, que "não tinha amigos nem inimigos definitivos" (risos). Continuamos assim durante algum tempo, mas em 1968, quando o Ato Institucional n.° 5 atingiu um redator do jornal, Marcelo Duarte, hoje vice-prefeito de Salvador, procurei ACM no sentido de ver se poderia ajudá-lo. Ele me deu uma resposta muito áspera, inesperada. Me deixou perplexo. Disse que o que eu colocava não era verdade e que os jornais da Bahia eram muito pouco corajosos. Eu lhe respondi que o Jornal da Bahia não era pouco corajoso, e que ele não perdia por esperar. Quanto aos outros eu não podia responder. E esse diálogo tornou-se um pouco mais ríspido - Disse a ele: "A partir de hoje, você perdeu o direito a minha intimidade, porque não tem educação, nem compostura para tal". Aí, o Luís Viana Neto, filho do governador Luís Viana Filho, se aproximou, botou panos quentes e nós nos afastamos. Poucos dias depois houve um temporal muito grande na Bahia, a cidade ficou inundada e o jornal colocou em manchete: "A chuva de um dia acabou com as obras do prefeito do século".

Prefeito do século era como os seus próximos o chamavam?
Título que lhe deu o escritor Jorge Amado e como ele era chamado pelos seus áuricos. Ele era muito amigo de Jorge. O Jorge, que era também um grande amigo meu, companheiro nos tempos do Partido Comunista, era um escritor que ficou muitos anos fora da Bahia. Depois voltou, e estava entusiasmado com a obra do século e com as facilidades, as relações que tinha. Ele, realmente, o Antônio Carlos, envolveu Jorge e daí nasceu uma admiração muito grande entre eles. Alem disso, o Jorge não tinha compromisso nenhum político e externava aquela capacidade de criar que ele tinha. Grande romancista. (risos). Depois da manchete no jornal, ACM me ligou no outro dia, pela manhã logo cedo, e me disse: "João, o que é isso? Você e o jornal me declararam guerra". E eu respondi pra ele: "Já lhe disse que você perdeu o direito à minha intimidade. Dirija-se à redação". A partir daí, naturalmente, as relações ficaram realmente tensas e foram se sucedendo outras coisas.

Coisas de que tipo?
O Jornal da Bahia recebeu uma máquina nova e estava procurando colocar essa máquina na sua sede. Isso implicava em obras que deviam ser licenciadas pela prefeitura. Nós o procuramos então através do gerente do jornal, o Bernardo Morais, que foi amigo dele - foram ao colégio juntos - e o pedido de licença para as obras foi entregue nas mãos dele, que era prefeito. Depois da primeira e de outras críticas que o jornal fez, ele não deu o alvará.

Quantos leitores tinha o Jornal da Bahia no auge?
No auge, chegou a ter quase 30 mil leitores - em 75, acredito que a população da Bahia ainda era de 700 a 800 mil habitantes. O jornal entrou pro IVC (Instituto Verificador de Circulação), coisa que os outros jornais não fizeram aqui na Bahia. Isso deu muito prestígio ao jornal e provocou o aumento da publicidade do sul do país, elevou o índice de leitores, e o jornal foi apontado como tendo o maior índice de leitores por caderno do país. Um exemplar era lido por 9,3 pessoas.

Depois da não liberação do alvará, o que mais veio?
Então, depois disso veio a briga dele com o João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, que era o redator-chefe do jornal e que trabalhava com ele, ACM, no órgão da prefeitura de turismo, Sutursa. Ele se desentendeu com o nosso redator-chefe e demitiu o redator. Houve uma polêmica em seguida, pois ele dizia que o Joca pediu demissão antes, que a demissão não foi a pedido dele. Bom, Joca pediu demissão pela primeira vez e Antônio Carlos foi então ao jornal, e na presença de todos que estavam na redação chorou. Chorou, e de lágrimas nos olhos, rasgou o pedido de demissão do Joca. Depois, ele mesmo deu entrevista dizendo que tinha demitido o Joca por falta de ubiqüidade no trabalho. Daí surgiu uma polêmica muito grande, que foi feita através do Jornal da Bahia porque o Joca era redator-chefe, e porque também tava precisando (risos).

Teve mais algum episódio que tenha marcado os primeiros tempos da briga entre o Jornal da Bahia e ACM?
Por último, como causas imediatas do rompimento, um articulista do jornal, o jornalista que até hoje está na imprensa diária, como colunista de A Tarde, Nilton Sobral, escreveu na seção política que o Antônio Carlos tinha sido a causa do rompimento, da desunião dentro da Arena, pois disputava com o Lomanto Júnior a liderança do partido, já tendo em vista a sucessão. A coluna não agradou o Antônio Carlos e ele me telefonou e disse: "Seu jornal é mentiroso". Eu bati o telefone na cara dele de novo. Esses fatores levaram, naturalmente, a uma tensão maior, mas continuamos a fazer nosso jornalismo independente, sério, criticando quando achávamos que deveríamos criticar. Depois desse episódio, da publicação dessa coluna, ele mandou uma carta ao jornal, uma carta muito ao estilo dele, desaforada, na qual dizia que o jornal era um ninho de comunistas (risos) e outras coisas.

E era?
Não, não era. Todos que estavam lá tinham sido comunistas.

Ninho de ex-comunistas, então?
É, um ninho de ex-comunistas. Todos tinham se afastado. Romperam com o Partido depois do Kruschev.

Quem esteve ao longo dessa história do jornal da Bahia, lá no começo?
Ah, Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro, o Muniz Sodré, Flávio Costa, João Batista Lima e Silva, Ariovaldo Matos e tantos outros, tantas outras grandes figuras, jornalistas de porte. Muitos foram trabalhar depois em outros jornais, em Brasília, no Rio de Janeiro...

A carta "desaforada" teve uma resposta?
Uma carta, que nós em princípio não devíamos publicar porque era uma carta agressiva, ofensiva - chamar de ninho de comunistas, naquela época, diante da situação política do país, com a ditadura, era uma provocação terrível, era uma denúncia. Mas mesmo assim o jornal publicou a carta e respondeu.

Foi uma delação. Essa é a palavra?
Sim, uma delação. Inclusive, foi isso que colocamos na resposta que demos: que ele se colocava como um delator. Foi uma resposta muito rigorosa, muito enérgica.

Algo mais?
Nesse telefonema ele também ameaçou demitir o jornalista Nilton Sobral do seu emprego. E realmente demitiu. Sobral trabalhava numa repartição do governo do estado. ACM foi ao governador Luis Viana e demitiu. Eu achei que a demissão do jornalista era injusta e fui ao governador Luis Viana Filho, na qualidade de seu colaborador, porque antes eu assumi a presidência do Banco de Desenvolvimento.

O senhor era dono de um banco, Banco Baiano de Produção. Como tal, foi convidado pra ser secretário da Indústria e Comércio, mas não aceitou?
Não aceitei a função. A demissão do Sobral, eu considerava que aquilo me envolvia seriamente porque era injusta. O redator não tinha nenhuma responsabilidade com a coluna do jornal, que era aprovada pela diretoria. Solicitei assim que o Governador desfizesse o ato. Ele então me pediu um prazo. Eu dei o prazo, mas ele não desfez o ato. Então pedi demissão do banco com uma carta.

Até então ele era prefeito?
É, prefeito. Quando da candidatura dele para o Governo, o jornal não apoiou e começou a levantar outros nomes para governar a Bahia, como o do ministro Carlos Simas, que era ministro das comunicações, das telecomunicações, e mais alguns outros nomes de pessoas ilustres da Bahia, que também podiam governar num regime ditatorial. Quem escolhia mesmo era a alta cúpula do governo federal, mas ele ficou preocupado com o trabalho do Jornal da Bahia, no sentido de vetar a candidatura dele. Então me procurou no Banco Baiano de Produção, um banco privado do qual eu era presidente. Eu o recebi e ele então levou um dossiê, mostrando que não adiantava o jornal lhe fazer oposição que ele seria o escolhido para governar a Bahia. Resumindo: que o Jornal da Bahia não criasse problemas. Então eu disse: "Olha, eu quero ser muito sincero com você. O Jornal da Bahia não apoiará a sua candidatura".

Por quê?
Ele perguntou "Por quê?". Eu disse: Primeiro, porque nós precisamos de um governador que seja um delegado do governo federal, do presidente da República, e que colabore com o presidente no sentido de encontrar uma saída democrática para o Brasil - que era o que o presidente Médici havia dito havia poucos dias numa entrevista aos jornais do país. Precisamos de um governador que o ajude nessa louvada iniciativa de redemocratização. E segundo, ele não era o homem, porque eu achava que ele tinha um temperamento antidemocrático e despótico, como os atos que ele vinha realizando, inclusive contra o Jornal da Bahia. Terceiro, ele era muito jovem e não conhecia os problemas da Bahia - realmente, ele era um rapaz formado médico e jornalista, não tinha conhecimento dos problemas da Bahia e eu achava que por isso ele não tinha condições de ser governador. Por último, disse a ele francamente que achava que ele não tinha nem educação doméstica para dirigir um estado como a Bahia. Ele levantou-se, não me disse uma palavra, não me cumprimentou e saiu.

E a guerra estava assim declarada?
Estava declarada. Mas em poucos meses ele é eleito e toma posse.

Como se posicionou o Jornal da Bahia diante da posse?
O Jornal da Bahia fez uma cobertura normal, como qualquer outro jornal, isenta, elegante.

Qual foi o primeiro sinal de boicote à publicidade do jornal?
O primeiro sinal foi uma conversa que ele teve com o seu líder no governo e que ele transmitiu aos jornalistas. Ele disse para alguns jornalistas ouvirem, inclusive a correspondente do Estado de S.Paulo, que ele fecharia o Jornal da Bahia. Disse que ia suspender a publicidade e trabalhar junto aos anunciantes. Esse foi o primeiro sinal. Em março ele tomou posse e, em maio, o Orlando Garcia, que era o porta-voz dele, e trabalhava no Diário de Notícias, deu uma nota dizendo que o governador não gostava, não apreciava que seus amigos colocassem anúncios em jornais que lhe faziam oposição. Assim, deu o recado para os anunciantes de que não deveriam anunciar no Jornal da Bahia. A essa altura ele já tinha suspendido toda a publicidade oficial do governo, da prefeitura, do estado e também dos prefeitos ligados a ele. E começou também a trabalhar junto aos anunciantes do Jornal da Bahia.

Quantos deixaram de anunciar?
Olha, no final eram mais de 150 anunciantes particulares, empresas privadas. (leia aqui a lista de empresas que deixaram de anunciar)

Por pressão direta?
Pressão direta. E para isso ele não só usava o seu prestígio pessoal e suas relações junto àqueles anunciantes que ele conhecia. Ele usava outros métodos também. Por exemplo, se uma indústria vinha se instalar na Bahia, ou uma outra firma qualquer, banco, enfim, vinha...

O senhor lembra mais ou menos em quanto por cento o faturamento caiu?
Só para se ter uma idéia, a publicidade daqui da Bahia, de janeiro a abril, cresceu no ano de 1971, em relação aos mesmos meses de 1970, em 54% e decresceu de maio a dezembro em 30,4%. Nos primeiros quatro meses houve um faturamento com média mensal de Cr$ 241.921,00, e nos oito meses seguintes, após a campanha do Governo, o faturamento teve média mensal de Cr$ 183.464,00, apesar das tabelas de publicidade terem aumentado e do jornal ter aumentado muito a circulação.
Ele usou não só essa política de comportamento, de perseguir, de pedir, aconselhar o anunciante a não anunciar no jornal, de fazer oposição sistemática a um jornal comunista, como também ele usava outros processos como coação fiscal. O jornal, para dar um exemplo, fez um pedido de aumento de capital, devido mesmo à crise, de Cr$ 500 mil naquela época e a Junta Comercial não aprovou o aumento, sem nenhum sentido. Impediu o aumento de capital durante meses, o que tornou, diante daquela perseguição, daquela crise, mais asfixiante a situação do jornal. Nós perdemos crédito dos bancos do Estado. Coação financeira. Coação sentimental...

Coação sentimental é o quê?
Ele apelava para os anunciantes.

Individualmente?
Individualmente. Principalmente aqueles que eram amigos e tinham ligações com ele. E todo mundo queria ter ligação com o governador, não é? (risos) Coação de todo tipo. Tudo que se possa imaginar que um governo possa fazer para esmagar uma empresa ele empregou contra o jornal da Bahia e seus anunciantes. Até leitores eram proibidos de ler o jornal em algumas repartições do estado.

Diante da crise financeira, o jornal foi então reduzido?
O jornal tinha 24 páginas normais e reduziu para 16, depois para 12 e depois para 8 páginas.

E quanto ao quadro de funcionários?
Nós perdemos mais de 100 funcionários. Antes tínhamos mais ou menos uns 300 funcionários, na redação. Mas demitimos não só da redação como também de outros setores.

Esse estrangulamento tinha repercussão nos outros veículos da época?
A opinião pública se manifestou solidária sempre ao Jornal da Bahia, embora, dentro dos limites. Porque havia o medo, o medo dominava. Era uma ditadura. Agora, alguns deputados mais corajosos, do ministro Juracy Magalhães, ex-governador da Bahia, esses se manifestavam com mais assiduidade. Os estudantes manifestavam solidariedade, a Associação Brasileira de Imprensa, a Associação Baiana de Imprensa também, e a Associação Interamericana de Imprensa, através de um de seus representantes, que era o jornalista Júlio de Mesquita Neto. A Associação Brasileira de Imprensa, na administração do senador Danton Jobim, e a Associação Interamericana de Imprensa dirigiram cartas ao presidente Médici, mostrando que estava sendo cometido um crime contra a liberdade de imprensa e pedindo a interferência dele para parar.

E sobre a campanha "Não deixe essa chama se apagar", de onde e para quê foi feita?
Em 72 chegamos ao pior momento da crise do ponto de vista empresarial. A sobrevivência da empresa estava seriamente ameaçada. Foi quando tomamos a decisão de apelar para o povo e lançar o slogan "Não deixe essa chama se apagar" no alto da primeira página. A resposta dos leitores foi imediata e a circulação aumentou substancialmente, permitindo a sobrevivência do jornal. Sei de pessoas que chegaram a fazer 2, 3 assinaturas, tamanho era o empenho da população em prol do Jornal da Bahia.

Contra o senhor e sua família, diretamente, houve alguma pressão?
Ah sim, houve. Certa vez, por exemplo, ACM anunciou em Palácio, perante jornalistas, que estava investigando se eu possuía terrenos em Salvador e que eu teria uma surpresa desagradável. Isso em resposta a uma campanha que o jornal fazia à época contra a maneira como estavam sendo desalojadas famílias humildes de um bairro de Salvador. Em dezembro de 71 ele orientou uma invasão nos terrenos em meu nome. Quando ouvimos os invasores e os vigias da propriedade, eles afirmaram que foram mandados pelo governador e pelo prefeito, que disseram serem aqueles terrenos da prefeitura. Em outra situação, Antônio Carlos ameaçou ir à televisão para denunciar a Família Falcão como sonegadora de impostos. Pelo absurdo das ameaças, ninguém podia acreditar que se concretizassem, mas isso aconteceu. Ele se aproveitou da minha ausência, pois estava viajando, e essas calúnias repercutiram rapidamente na imprensa do Sul do País, junto à divulgação de uma matéria paga, na qual acionistas minoritários concatenados com o governador diziam terem adquirido o controle acionário da Editora Jornal da Bahia.

Então ele tinha interesse em obter o controle do jornal?
Sim, tinha. E eu não tinha a maioria das ações na empresa, já que o jornal nasceu do apoio da população de Salvador, que subscreveu ações. Com a ameaça desse grupo de acionistas, tive que fazer um enorme esforço financeiro para alcançar a maioria do controle acionário. Graças à viúva do Jornalista Ranulfo Oliveira, eu consegui.

Em 1974 teve fim o governo de ACM e início do governo de Roberto Santos. Daí por diante, o que aconteceu com o jornal?
A partir do 16º aniversário do jornal, publicamos um selo com a expressão: "Contagem regressiva: faltam X dias para o fim do governo". Essa mensagem começou a circular 172 dias antes do fim e passou a ser um divertimento diário. E no 1º de janeiro de 1975, o Jornal da Bahia anunciou o Novo Ano, com a Bahia livre de Antônio Carlos. Os ventos eram favoráveis, mas a recuperação financeira do jornal era muito difícil. Sem o arrocho de ACM, o jornal recuperou rapidamente a publicidade e manteve a vendagem de jornais, o que atendia às despesas normais da empresa. Mas a dívida contraída em dólares nos anos de arrocho crescia muito a cada desvalorização da nossa moeda.

O senhor chegou a disponibilizar os bens da família para pagar essa dívida?
O patrimônio vendido chegava a somar quase US$ 2 milhões. Cheguei a colocar a minha própria casa à disposição.

Quando o senhor tomou a decisão de vender o jornal?
Essa luta me levou a um stress insuportável e fui aconselhado pelos médicos a abandonar essa atividade. Era o jornal ou a vida. Houve uma primeira tentativa fracassada de venda em 1976, mas só em 83 encontrei compradores. Tinha esperança de que ali começaria uma nova era de progresso no jornal. Do meu ponto de vista, minha missão estava cumprida.

Por que só agora o senhor resolveu contar essa história?
Porque senti que estava devendo ao povo da Bahia uma denúncia desse atentado à liberdade de imprensa.


Vale a pena ler o livro também.

"Não deixe essa chama se apagar: História do Jornal da Bahia"
João Falcão
Editora Revan
R$ 35 (252 pág.)

Nenhum comentário: