19 outubro 2006

A UDN no shopping e nas eleições


Há muito tempo a “velha UDN” trocou os oratórios de madeira, que fazia parte do mobiliário das salas das residências, por aparelhos de televisão.
As orações da boca da noite deram lugar às telenovelas e aos telejornais. As telenovelas passaram a ser uma referência tão forte na vida das pessoas que são visíveis as mudanças de comportamento. Como diz o compositor Jorge Mautner, em uma de suas músicas, “a telenovela é a educação sentimental da classe média nacional”.

A “velha UDN”, em tempos idos, era uma matriarca católica, dessas de penugem nos cantos da boca, se vestia de preto, andava de bordão de jacarandá com brasão da família, cravejado em latão. Ainda hoje, fotos amareladas, emolduradas, de famílias aristocráticas, cobrem paredes de casas e apartamentos ou ocupam lugar de destaque sobre os móveis das salas.

Uma parte da “velha UDN” e seus descendentes migraram do campo para as cidades muito antes de tornar-se uma sigla, uma agremiação partidária, muito antes do PSD se enraizar no coração e na mente dos fazendeiros. Construiu fortuna e se tornou a matrona do sistema financeiro. Quis desfrutar dos produtos do ciclo de industrialização do Brasil, andar de automóvel, beber coca-cola, ir ao cinema, entregar seu coração a Hollywood, ler Seleções Reader's Digest, revista O Cruzeiro, revistas em quadrinhos da Disney, colocar os filhos para estudar medicina, engenharia, direito, agronomia, cursos preferidos dos filhos da aristocracia.

Levou Getúlio ao suicídio, quis impedir a posse de Juscelino Kubitschek, organizou a famosa “Marcha da família com Deus pela liberdade”, em 1964, na capital paulista, para derrubar João Goulart e apoiou o golpe militar que levou o Brasil a um dos mais obscuros períodos de sua história. Impediu a reforma agrária, ajudou a organizar o latifúndio, mecanizou a produção agrícola com crédito subsidiado pelo Banco do Brasil e com as tecnologias desenvolvidas pela Embrapa. Conseguiu banir das fazendas para as periferias das grandes cidades, onde vivem em condições sub-humanas, um contingente populacional gigantesco de remanescentes da escravidão.

Independentemente, se no campo ou nas cidades, hoje a “velha UDN” ainda dispõe de uma cultura política, ideológica, poderosíssima. A UDN urbanizada, que poderia ser chamada de “nova UDN” tem casas e apartamentos com todos os eletrodomésticos disponíveis: carros de luxo nas garagens, viaja de férias todo ano, tem celular, computador plugado na Internet e tv a cabo. Busca a paz nos templos de consumo (shopping-centers) e nas igrejas.
Uma parte se “modernizou” em relação à fé. Abandonou a igreja católica e suas imagens de santos, seus sacerdotes e freiras. Trocou pelas igrejas evangélicas e seus pastores e pastoras. A “nova UDN”, hoje em dia, quando não está diante da tv ou na internet, alimentando a alma com a programação de entretenimento, está vagando pelos shoppings ou nas feiras de produtos de contrabando, comprando um pirata qualquer. Uma contradição com a moral, rígida, anti-corrupção.

Nas praças de alimentação dos shoppings se empanturra nos fast-foods com sanduiches, pizzas e refrigerantes. A balança, a academia, as revistas de boa forma e o colesterol se transformaram em seu inferno. Um “sofrimento-doce” - coisa do “ status quo” - assuntos para longas conversas nas tardes tediosas e nos finais de semana, nos encontros de família. A “nova UDN” é “chique”. Vale lembrar que “chique” é diferente de elegante.

Nas casas e apartamentos “modernos”, a arquitetura mantêm a senzala, a chamada “dependência de empregados”. Um cubículo onde enfiam os novos escravos que cozinham, lavam, passam e cuidam dos filhos das famílias urbanas. A “ama-seca” ganhou uma nova denominação: “babá”. Coisa da modernidade.

Livro, revista e jornal, em casa, às vezes. Ler dá sono. Prefere uma espiada no telejornal depois da novela. É o melhor horário para ver os anúncios de carros novos, telefones celulares e bancos. Aqueles filmes publicitários que embalam os sonhos de tornar-se uma daquelas personagens elegantes e bem sucedidas na vida. A maior aspiração da “nova UDN” é tornar-se rica, manter o “ status”, entranhado nas profundezas de sua alma, o controle moral da sociedade e o poder político perdido no processo de democratização do país. Mantém latente o mesmo ódio de classe que levou o ex-governador do antigo Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, ao escândalo da “operação mata-mendigo”, efetuada pelo Serviço de Recuperação de Mendigos.
Os agentes desse serviço foram flagrados jogando mendigos no rio da Guarda, na Baixada Fluminense, depois de denúncias de desaparecimento de grande número deles. Esse serviço foi o embrião da ideologia do “Esquadrão da Morte”. Outro escândalo foi a queima de favelas, como a do Pasmado, no Rio, para expulsar os moradores. Recentemente, causou perplexidade a declaração do ex-presidente Fernando Henrique, de que o Brasil está precisando de um novo Carlos Lacerda.

Uma parte da “nova UDN” passou pela universidade, ficou “ ilustrada” . Participou, tempos atrás ou ainda participa, do movimento de democratização do país, mas preferiu se juntar aos de cima na defesa do projeto neoliberal, o sucesso profissional, a escalada do enriquecimento.
Luta para manter privilégios de classe e nada mais, fecha o vidro do carro quando os mendigos se aproximam para pedir ajuda. Para ela os de baixo são invisíveis. Não vê lixeiros, garçons, frentistas, taxistas, pessoas que andam de transporte coletivo. Sabe que essas pessoas existem quando necessitam de seus serviços. Vê o noticiário policial nos telejornais, viaja de avião e olha lá de cima o amontoado de barracos das periferias das grandes cidades como se as favelas fizessem, naturalmente, parte da paisagem.

Em eleições, a “nova UDN” costuma optar por candidatos que representam esse ideário aristocrático, meritocrático, condizente com sua escala de valores, de matriz religiosa. Tanto assim que, em 2002, fez uma concessão e votou em Lula para presidente, depois dele penar sob a violência da discriminação de classe e ser derrotado em três eleições. O preconceito foi rompido momentaneamente. Muito pelo fato de estar votando num “vencedor”, num homem de mérito, que saiu de Garanhuns, em Pernambuco, enfrentou a pobreza em São Paulo e se tornou um líder respeitado não só no Brasil, mas em várias partes do mundo.

Outro fator importante que deve ser considerado, é que naquele período a “a nova UDN” estava inconformada com o governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O governo que, na época da paridade do Real com o Dólar, levou-a ao paraíso do consumo de produtos importados, a viagens internacionais, estava acabando em grave crise econômica e financeira, sob denúncias graves de corrupção, sem permitir investigações, principalmente denúncias sobre o processo de privatização das empresas estatais. Aquele paraíso de ilusões ruiu. Em resumo, em 2002, era “chique” votar em Lula. Afinal, o vencedor tem seu lugar no ideário da “nova UDN”.

Logo depois da democratização política do país, na década de 80, após a promulgação da Constituição de 1988, a “nova UDN” ganhou um presente da elite intelectual paulistana. Um partido político pensado para ela. O PSDB. Um partido para a chamada “classe dos formadores de opinião”. O PFL, neto da velha Arena, que deu sustentação à ditadura militar, andava em dificuldades para se tornar um partido que atendesse as aspirações da “nova UDN”. O PMDB avançava no controle institucional do país e os partidos de esquerda, liderados pelo recém-criado PT, avançavam na organização da população operária urbana e no movimento dos trabalhares rurais sem terra.
Foi nesse contexto que surgiu o PSDB, vendido à opinião pública como um partido moderno.

O PSDB vestiu como uma luva o ideário da “nova UDN”. Em 1989, liderado por Mário Covas, que parecia um pássaro fora do ninho, por ter posições à esquerda do partido, o PSDB foi às urnas e no segundo turno até subiu no palanque de Lula, candidato do PT, quando este disputou com Collor.

Collor teve o apoio majoritário da “nova UDN”, que se referenciava no PFL.
Aquela parte que se engajou na eleição do “caçador de marajás” queria ver “Frei Damião andando de jet-ski”, quem sabe, exportar Padre Cícero robotizado. Ou seja, a “velha UDN”, que veio do interior para os grandes centros urbanos, em tempos idos, deixou aflorar seu desejo de ser internacionalizada, pertencer ao primeiro mundo e, talvez até dar a mão a um astronauta e sair por aí, a passeio, pelo espaço sideral. Queria se desgarrar definitivamente do outro Brasil, aquele da herança colonial, das pessoas invisíveis.

Naquele período, quem defendia interesses nacionais era chamado de dinossauro, xenófobo e outros adjetivos não menos pejorativos. A ordem era globalizar, seguindo as instruções das agências internacionais que faziam parte do chamado “Consenso de Washington”. Afastado Collor, sob acusação de corrupção e também pela falta de confiança das grandes corporações financeiras internacionais, que tinham projetos prontos para compra das estatais brasileiras, e realização de outros negócios no país, o PSDB tratou de articular a herança do legado político do governo Collor. Começou um
namoro firme com o PFL. Noivou, casou-se em 1994, e do casamento nasceram dois mandatos para Fernando Henrique Cardoso. Casamento perfeito. A “nova UDN” urbana, representante do capitalismo financeiro, foi ao altar, para as bênçãos do império, com a “velha UDN”.

O PFL reúne desde o setor financeiro, passando pelas corporações dos meios de comunicação até o agronegócio. O PSDB entrou com a tecnocracia formada em famosas escolas internacionais como a escola de Chicago e Harvard, com apoio do sistema financeiro nacional e internacional, que tinha seus interesses, evidentemente, na moeda e no livre mercado comercial, desde que a sede fosse os EUA.

Esse casamento é a cara da “nova UDN”, cuja estética pode ser percebida nas grandes cidades litorâneas do país, que se transformaram em caricaturas de Miami. Já as cidades do interior, andam com a cara do Texas.
Os rodeios dão o tom da música, da vestimenta e do comportamento. Essa estética pode ser vista também em coisas simples como num maço de cigarros de palha fabricado em Minas Gerais, de nome “Souza Paiol”. O maço é ilustrado, na parte frontal, com desenho de um cowboy de chapéu texano, óculos Ray Ban, calça e jaqueta jeans. Por que não um mineiro pescando num rio, fumando seu cigarrinho de palha?

Esse pequeno exemplo parece suficiente para imaginar o ideário da “nova UDN” em ebulição no Brasil, e quem o defende nas eleições presidenciais deste ano. O candidato Geraldo Alckmin é um aristocrata paulista, conservador, representante da “elite branca”, que quer retomar o projeto do governo Fernando Henrique Cardoso, interrompido com ascensão de Lula à Presidência da República. Tem no seu currículo suas ligações com a “ opus dei ” , uma agremiação religiosa considerada a mais conservador da igreja católica. Faz sua campanha de forma muito parecida com aquelas lideradas por Carlos Lacerda nos tempos idos da “velha UDN”, com ataques virulentos ao governo focado na corrupção, como se a corrupção tivesse surgido no governo Lula. Ignora o esforço do governo no combate à corrupção.
Até agora não se sabe, concretamente, qual o projeto do candidato Alckmin.
Sabe-se apenas da mobilização das forças conservadoras derrotadas e da instigação de preconceitos de toda natureza, principalmente o preconceito de classe. De todas as características do candidato Alckmin, afloradas no debate, as mais ostensivas são o cinismo e a desonestidade. Como pode um candidato a presidência da República dizer que o governo não fez nada e que é o mais corrupto do país? A luta dele se resume na manutenção do status quo. O Geraldo Alckmin é a cara da “nova UDN”.


Laurez Cerqueira é jornalista e escritor, autor de “Florestan Fernandes vida e obra” e “Florestan Fernandes – um mestre radical.”

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