27 setembro 2006

NÓS X ELES: QUAL É O SEU LADO?



Reflexões pertinentes às vésperas de mais uma hora "H"


Se desembarcasse hoje da máquina do tempo, o sábio persa Mani (cuja filosofia é raiz do termo maniqueísmo) certamente vibraria com a profundíssima divisão da sociedade brasileira. Ao examinar um e outro lado, provavelmente não tomaria partido, mas exultaria com o chumbo grosso trocado, fenômeno que se manifesta em todos os ajuntamentos humanos, das rodas de samba às redações de jornal, dos templos aos mercados, dos parlamentos aos bordéis.

Se há conflagração, que se lhe reconheça um mérito. É pedagógica. Revela quem somos, aponta o que tememos, expõe o que desejamos. A nomenclatura do jogo ("nós x eles") vem sendo empregada com freqüência, especialmente pelos lanceiros das agremiações políticas mais conservadoras. É o caso do blogueiro Reinaldo Azevedo, cujo discurso de incitação remete ao pior da rivalidade clubística. Sabe-se que, em momentos de crise, as massas são particularmente suscetíveis a construções retóricas dessa natureza, como bem escreveu o fundador da psicologia social, Gustave Le Bon.

A estratégia de Azevedo e de seu confrade Diogo Mainardi é incutir em expressivos segmentos da sociedade a idéia pavorosa de degradação acelerada. Segundo eles, o que era "bom" foi desvirtuado pelos "maus", agora empenhados em solapar os direitos remanescentes daqueles que se julgam do "bem". Quando mais os "bons" se sentirem acuados, mais vigorosamente reagirão às investidas dos "maus".

Em suas colunas, ambos empregam as receitas consagradas da propaganda dos cruzados, posteriormente renovadas pelo nazi-fascismo. Nomeiam o inimigo, isolam-no, exageram suas forças e o demonizam. A ele atribuem a culpa por todos os sofrimentos dos "bons". Não importa se o problema são as altas taxas de impostos ou as espinhas do adolescente. Encontra-se em cada flagelo a intervenção do elemento daninho.

Esse processo de sacralização invertida do oponente é contagioso. Não é à toa que o jornalista Clóvis Rossi, da Folha de S. Paulo, utilizou o termo "impressão digital" na tentativa de vincular Luiz Inácio Lula da Silva à tragédia de Jean Charles de Menezes, o brasileiro assassinato pela polícia, em Londres.



Direita x Esquerda: existe diferença?



Quando tinha lá seus 15 anos, numa longa viagem de carro a Ouro Preto (MG), a irmã-sobrinha Daniela me atirou ao córner com uma pergunta afiada:

- Afinal, qual a diferença entre esquerda e direita?

Hesitei, hesitei, até que arrisquei uma lição ilustrada.

- Bom, imagine um feriado prolongado no meio do ano. Uma grande turma de amigos resolve subir uma montanha. A idéia é assistir ao pôr-do-sol lá de cima. Na noite anterior, os jovens amantes da natureza dormiram bem, mas nem todos. Estão em plena forma física, mas nem todos. Dispõem de ótimos tênis para trilhas, mas nem todos. Sorriem, de bem com a vida, mas nem todos.

- Caramba... Que enrolação...

- Calminha... No início, seguem juntos. Aos poucos, no entanto, alguns vão se atrasando. Bem lá na frente, distancia-se inapelavelmente o que dormiu com os anjos, que tem oportunidade de malhar todos os dias, que calça um super-tênis e que anda cheio de orgulho por ter sido promovido na empresa.

- Mas o que isso tem a ver com política? - perguntou, agitada.

- Paciência que estou chegando lá. Eles precisam chegar ao topo antes da seis da tarde, mas o caminho é longo e íngreme. Alguns da turma da frente julgam que têm todo o direito de aproveitar as condições favoráveis. Seguem aceleradamente. Julgam-se merecedores do triunfo. No entanto, alguns desse pelotão avançado pensam de modo diferente, e decidem auxiliar os retardários. Dividem o suprimento de energéticos, emendam curativos, animam o pessoal. Enquanto ocupam-se dos mancos e ofegantes, sabem perfeitamente que podem perder o magnífico espetáculo. Isso não é bem Ciência Política, mas eu acredito que o pessoal lá da frente é mais de "direita". O que se deixaram atrasar são mais de "esquerda".

Por muito tempo, questionei-me sobre o exemplo. Seria apropriado? Até que, num artigo de Emir Sader, publicado em 2002, topei com uma entrevista concedida por Norberto Bobbio ao Jornal do Brasil, em fevereiro de 1987. Para expor o conceito, o pensador italiano emitira a seguinte resposta:

''Como direita continuo a considerar aquelas forças que se põem a serviço dos interesses das pessoas satisfeitas. Os outros, os que se sentem e agem do ponto de vista dos pobres, dos danados da terra, são e serão sempre a esquerda. Todas as vezes que me pedem uma distinção entre direita e esquerda, respondo que a fundamental é essa. No nosso tempo, todos os que defendem os povos oprimidos, os movimentos de libertação do Terceiro Mundo, são a esquerda. Aqueles que, falando do alto de seu interesse, dizem que não vêem por que distribuir um dinheiro que suaram para ganhar, são e serão a direita. Essa é a divisão que existe em toda parte, aqui como no Brasil.''

Pretensioso, considerei não ter me saído tão mal como tradutor da teoria. Outro trecho da entrevista me parece epistemologicamente luminoso:

''Quem acredita que as desigualdades são um fatalismo, que é preciso aceitá-las, desde que o mundo é mundo sempre foi assim, não há nada a fazer - sempre esteve e estará à direita. Assim como a esquerda nunca deixará de ser identificada nos que dizem que os homens são iguais, que é preciso levantar os que estão no chão, lá embaixo.''

Recentemente, o debate familiar veio à tona novamente quando a carinhosa companheira Marisa revelou sua preocupação com o texto *Decisão de Vida: Basta!!, creditado a Joana Araújo Lemos, em que um conservador fictício se escandaliza com a atenção do governo Lula aos mais pobres.

- Esse tiro pode sair pela culatra. Muita gente nem vai perceber a ironia. Vão dizer que é mesmo um absurdo gastar com o Luz para Todos e com o Bolsa Família...

É provável que tenha razão.



Quem é a nossa turma



A propósito dessa suspeita, veio à memória o texto Na Pista dos Bem-Nascidos, de Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot, publicado no Le Monde Diplomatique. Trata basicamente dos mecanismos de manutenção e adequação da ideologia das classes dominantes na era pós-industrial. Como estratégia de cooptação, a proposta é repetir, sempre, incansavelmente, a teoria de que não há teoria: o mundo é assim mesmo, individualista, competitivo, vencem os mais fortes e, por bem ou por mal, será assim para sempre. Os autores desenvolvem o raciocínio:

“(...) O avanço dos individualismos mina as antigas solidariedades nos meios populares e os engajamentos militantes das classes médias. Ao mesmo tempo em que se desagregam os sentimentos de classe na sociedade, a grande burguesia continua altamente consciente de seus interesses e preocupada com sua coesão".

Talvez, portanto, a reação possível resida na revalorização do berço daqueles não tão "bem-nascidos". Recorro novamente ao testemunho pessoal, não por arrogância egocêntrica, mas por preferir o exemplo próximo, modesto e objetivo. É no teatro particular das famílias e das províncias que podemos compreender a vastidão e a complexidade do mundo.

Na "minha turma", prefiro os que se atrasam. O bisavô Vincenzo, que se meteu a desinfectar as casas dos doentes na luta contra a Gripe Espanhola; a vó Carolina, que alfabetizou pencas de moleques na Vila Formosa; a mãe Bida, que resgatou o anel de noivado da colega depois de um acidente na fábrica; os tios Chiquinho e Zezinho, empenhados na obra social vicentina; os amigos mentores Luciano Mendes de Almeida e Angélico Sândalo Bernardino; minha "irmãe" Tata e seus bazares kardecistas; a prima Dedé, que vinha ajudar a passar cera Cardeal no terraço da casa velha; o irmão Jura, que sobreviveu a um dilúvio em São Miguel Paulista para segurar todas as barras; a odonto-fada Marianne que bota brilho solidário em nossos sorrisos... Nossa, que bela turma de "atrasildos", de gente que não se incomoda de perder o pôr-do-sol.

A rigor, creio que esses bons companheiros até superaram os conceitos de esquerda e direita. Em algum momento, foram suficientemente corajosos para olhar para cima e, ao mesmo tempo, estender a mão para trás. Arrisco, novamente, na experiência particular, apontar quem somos "nós".

Em 15 de Novembro de 1982, acordei cedinho para a boca-de-urna. Muita vontade. Muita precariedade. Alguns santinhos do nosso candidato tinham sido produzidos na base do xerox e tesoura. Diante do portão de ferro, já me esperava o irmão-sobrinho Marcio. Vixi Maria...

- Posso levar?

- Leva, mas cuida dele.

Passamos o dia em labuta, sob um sol abrasador. De refeição, somente umas bolachas de chocolate com Coca-Cola. Chegamos já noite em casa. O moleque, ruivo e sardento, mais parecia um peru. Ia descascar que nem cobra. Depois dos banhos e pomadas, fomos tomar vitamina de leite com pera. É desse momento um diálogo que levarei vida adentro.

- Hoje, eu acho que fizemos uma coisa boa - arriscou o menino. E ele vai se eleger, não é?

- Olha... É muito difícil... Acho que... - respondi, quase constrangido.

- Não tem problema... Importante é que nós estávamos juntos nessa...


Walter Falceta Jr. (Jornalista, São Paulo)

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