24 setembro 2006

''Sempre achei o mensalão uma bobagem''

Entrevista com Rose Marie Muraro: escritora


Reconhecida no Brasil e no Exterior como autora de livros sobre a condição da mulher, Rose Marie Muraro ganhou prestígio como feminista a partir dos anos 70. Formada em economia, circula pela sociologia, antropologia e psicologia para entender o feminino e seu ambiente de opressão e pobreza. Nesta entrevista por telefone, ela defendeu uma tese que admite ser capaz de provocar reações indignadas:

- Ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a imoralidade.

É dita, repetida, soletrada para defender que, apesar das denúncias de corrupção, o governo Lula deve ser anistiado por ter socorrido os pobres. A escritora, 75 anos, entende que setores que cobram moralidade de Lula, do governo e do PT sempre se comportaram imoralmente. A seguir, a entrevista que concedeu por telefone:

Zero Hora - Os intelectuais identificados como de esquerda voltaram a falar depois da crise de corrupção?

Rose Marie Muraro - Eu falei o tempo todo. Nunca estive em silêncio. Outros estiveram, porque houve um desânimo, um pouco de decepção com Lula. Mas vou votar nele de novo. Minha decepção é com a parte econômica. Quero ver o que ele vai fazer no segundo mandato. Estou votando meio de nariz fechado. Mas no Alckmin (Geraldo Alckmin, candidato do PSDB) não voto porque é da extrema direita.

ZH - Sua decepção é só com a área econômica?

Rose Marie - Eu estava esperançada. Achei que Lula sairia do modelo neoliberal, e ele não saiu. Mas reconheço que o Bolsa-Família incrementou a economia do Nordeste, que cresceu 10%. Aprendi com Dom Hélder Câmara (arcebispo de Olinda e Recife, já falecido) que, ao mesmo tempo em que se dá comida, é preciso se fazer uma reforma estrutural. Mas o pobre diz: Lula faz por mim. Os porteiros da minha rua dizem: pelo menos hoje a gente come. Um deles me contou: pela primeira vez consegui juntar dinheiro para comprar uma passagem e retornei à minha cidade no Nordeste, e ela estava toda iluminada.

ZH - Por isso, segundo as pesquisas, os pobres votam em Lula?

Rose Marie - O pobre sempre foi expropriado desde o nascimento. Lula sabe disso porque fugiu de Garanhuns para não morrer de fome. Uma pesquisa que realizei mostra que, desde que nasce, uma criança filha de camponeses sabe que vai chorar de fome e que seus desejos não serão satisfeitos, que sua fome não será saciada. Que ela sempre espera pela mãe, que já sofria como mulher a opressão do marido, dos pais. Essa criança esperava, na passividade, pela vontade de Deus, do céu, uma salvação. Se ficasse boazinha, como pobre, iria para o céu. Aí tem também a opressão do patrão, do machismo, a dominação, a religiosidade popular.

ZH - O pobre não vincula Lula ao mensalão e agora ao caso do dossiê contra Serra?

Rose Marie - O pobre já vinha sendo roubadíssimo, expropriado. Isso de mensalão e de sanguessuga é da lógica da classe média, não chega ao pobre da forma como os entendemos. A corrupção é uma disfunção do sistema econômico. Temos uma dupla moral. Os pobres serão sempre roubados pelos dominantes, porque os pobres devem ser honestos, e eles, não. Um banqueiro me disse que é assim mesmo, que a corrupção e a fraude são das leis do mercado. A classe rica ri de você. O caso do dossiê é revelador. Nada se investiga sobre o envolvimento de Serra com as sanguessugas, mas tudo se investiga sobre o PT. A mídia está com todo o foco sobre o PT.

ZH - Todos, invariavelmente, agem então de forma antiética?

Rose Marie - Eu digo que ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a imoralidade. O pobre sempre ouviu que deveria ser honesto, mas foi expropriado. Hoje ele pensa: vou votar em alguém que faz algo por mim, que me dá o que comer. É ético o que o povo está fazendo, ele está defendendo a sua vida. É a lógica da vingança de quem sempre foi expropriado. Seja quem for, se der comida aos pobres, terá meu voto. São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, já dizia que, se você está com fome, você tem o direito de roubar. Nenhum presidente antes havia favorecido tanto os pobres, a não ser Getúlio Vargas. Mas depois veio Delfim (Delfim Netto, ministro da Fazenda durante a ditadura) e expropriou a comida dos pobres. Delfim era um ético?

ZH - Isso justifica o mensalão e a corrupção?

Rose Marie - Essa história de mensalão foi criada pelo PFL. O próprio Roberto Jefferson (ex-deputado, do PTB, que denunciou o mensalão) disse que o PT não tinha se locupletado. Os outros governos roubaram indistintamente. Juscelino (Juscelino Kubitschek) fez Brasília com o dinheiro da Previdência. O mensalão é pouco perto dos bilhões das privatizações do governo FH, o governo mais corrupto. Mas Lula é considerado um semi-estadista, e FH é um grande estadista. Sempre achei o mensalão uma coisa ridícula, uma bobagem. Converso com pessoas esclarecidas que se deram conta de que tudo foi uma armação.

ZH - O governo não tinha como agir de outra forma, sem o mensalão?

Rose Marie - Tinha. Eu iria para a TV e diria: tenho tais leis para votar, boas para a população, e o Congresso não quer. Mas como governar se a Câmara tem os partidos dos ruralistas, das empreiteiras, da indústria farmacêutica, dos bancos, das indústrias? O que Lula deveria ter feito era trocar a política econômica que beneficia essa elite. Mas ele acendeu uma vela a Deus e outra ao diabo.

ZH - Pelas suas conclusões, Lula teria sido vítima de uma campanha moralista?

Rose Marie - Todo moralismo é farisaísmo. Está em São Mateus. Os fariseus de hoje são a classe dominante. Falam de moral num sistema que sempre foi imoral. Isso é farisaísmo. E não sou comunista, porque o comunismo tem a mesma lógica. A noção de ética não pode ser aplicada à economia se não vier acompanhada de outros valores. Essa moral foi feita para manter as pessoas pobres. Eu não sou farisaica. Enfrentei a ditadura e luto concretamente contra a injustiça.

Fonte: Zero Hora
Por Moisés Mendes

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