26 setembro 2006

Um Ritual na Igreja do Ódio


Em culto na capital paulista, cardeais do neoliberalismo celebram a intolerância

Em 1964, as recatadas Senhoras de Santana, militantes de células ultraconservadoras da Igreja Católica converteram-se em peças estratégicas no golpe que sacou do poder o presidente João Goulart e instaurou a Ditadura Militar. Na segunda-feira friorenta, dia 26, os cardeais do neoliberalismo atravessaram o Tietê para celebrar, nas franjas do bairro, no Clube Espéria, um macabro ritual de sagração do ódio e de incitação ao embate.

No início da noite, já circulavam pela Avenida Santos Dumont centenas de brilhantes e posudos bólidos metálicos. Mercedes, BMWs e Volvos despejavam nas área de acesso a fina e bem alimentada elite "branca" paulistana. Alheias ao ridículo, algumas senhoras pareciam trajadas para um baile de formatura. Uma ossuda madame do mundo da moda, metida em saltos altíssimos, torceu o pé, ainda na entrada. Foi auxiliada por seu motorista e secretário, um sujeito discreto e solicito. Depois riu, nervosa e excitada:

- Vamos logo, se trata de depor um presidente da República.

Entre os engravatados, muitos vestiam-se de bem desenhados Armanis e Zegnas. Para quem não sabe, um terno Zegna feito sob medida pode custar o equivalente a 230 bolsas-família, ao valor médio daquelas distribuídas na periferia de João Pessoa, na Paraíba.

Cabelos compridos (mas não muito) e levemente ondeados, conforme dita moda para os garotos bem-nascidos da Zona Sul, o filho de um rico empresário reclamava do atraso. "Cara, eu era para estar em Nova York, hoje, meu...", repetia, bufando. A todo minuto consultava o ceboludo relógio, que tirou do bulso para exibir a outro jovem. Era um Bulgari! Um Bulgari, de verdade! Segundo a edição especial "AAA" da revista Veja São Paulo, a peça custa o equivalente a 270 "auxílios-manutenção" recebidos por bolsistas do Prouni.

Também enfadada, uma curvilínea garota loura aguardava, no lado de fora do salão, o início do ritual. Entre caras e bocas, reclamava do frio. "Nem posso exibir minha arte", lamentava. Enfim, não resistiu e sacou o casaquinho de veludo. Com uma espécie de purpurina, desenhara sobre a camiseta preta de lycra uma mão com apenas quatro dedos. Acima, escreveu: "impeachment nele".

Provavelmente, os sacerdotes tucanos arrebanharam menos almas do que imaginavam. Certamente, não havia 3 mil fiéis, conforme o prognóstico. As ausências, no entanto, foram compensadas por muita exaltação. Antes dos discursos, ouviam-se urros, imprecações e assovios. Quem assistiu ao filme Calígula já viu comportamento parecido na cena da execução pública de Macron.

O governador Claudio Lembro, antes comportado, foi contagiado pelo clima apropriado à aplicação da Lei de Lynch. Em dado momento, gritou:

- Vamos fazer uma limpeza geral. Ou eles vão para casa, ou vão para Catanduvas (presídio), de que eles gostam tanto.

- É pena de morte para o Lula - gritou o rapaz do relógio Bulgari.

Ao lado da tribuna, assessores de Roberto Freire, do PPS, incitavam a multidão com os braços, como se fossem responsáveis pela claque num programa de auditório.

Durante a celebração, a empolgação foi tamanha que um "petista", se flagrado no recinto, certamente não escaparia com vida. Ufa!! O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso converteu-se numa espécie de alucinado juiz da Santa Inquisição ao proferir seu sermão. Novamente, insistiu na forçada teoria de que Lula se compara a Jesus Cristo.

Com olhos severos e voz acusativa, o Bernardo Guy moderno procurava incutir ódio na platéia. Durante o discurso, qualquer incauto se convenceria de que o presidente da República é culpado por todas as mazelas do mundo, da disseminação da Aids na África à derrota do Brasil na Copa do Mundo. Em dado momento, como se estivesse possuído, simulou uma espécie de ato de descarrego.

- Isso não é Cristo não. Isso é o demônio! Isso é demônio! E nós temos que expulsá-lo daqui", bradava FHC, para delírio da platéia em transe. "A culpa é dele, porque seu dedo é podre".

- Ele é o Judas! Ele é o Judas! O traidor do povo. - disparou Geraldo Alckmin, o representante da prelazia pessoal do Opus Dei no evento.

Do púlpito ou em particular, todo o colégio cardinalício do PSDB e do PFL exigiu ruptura e conclamou os crentes à prática da intolerância. A palavra impeachment foi citada várias vezes nas entrevistas com os jornalistas. Tasso Jereissati, presidente tucano, falou em "impeachment pelo voto", mas decretou que a luta pela deposição de Lula se estenderá para além da eleição.

A senhora do mundo da moda, aquela dos saltos altos, saiu comovida do culto. No caminho, enquanto falava da próxima manifestação anti-Lula, na quinta-feira, torceu de novo o tornozelo. Chegou ao carro escorada no mesmo gentil motorista, um sujeito atarracado, de baixa estatura, alguém que nasceu no interior de Pernambuco.

Mauro Carrara - Jornalista

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