Quando o ex-presidente exortou seus seguidores a “por fogo no palheiro”, numa carta criptográfica, depois didaticamente decifrada para os simples mortais numa entrevista, estava, talvez inadvertidamente, oferecendo a senha para a atual ofensiva do aparato de comunicação contra a candidatura Lula, nessa reveladora disputa para a Presidência da República. Buscava reunir, sua alteza, as últimas energias das hostes dos cavalheiros organizados sob o escudo Daslu, para deter o avanço aparentemente irrefreável do populacho rumo a mais um mandato à frente dos destinos do país. Para tanto contou, a posteriori, com o fósforo aceso oferecido pela mesquinhez de figuras incapazes de enxergar a disputa política além do espaço subterrâneo das intrigas.
Há poucos dias, conversando com um militante de larga experiência e estudioso da história política do Brasil, ouvi dele o nome e sobrenome Fernando Henrique de Lacerda. A “Carta aos eleitores do PSDB”, uma espécie de carta-testamento, na definição de Emir Sader, enviada pelo ex-presidente, na última semana, revela a impressionante atualidade da frase com que Marx abre O 18 Brumário de Luiz Bonaparte: “... todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
De referência central e obrigatória para a disputa política que se travou ao longo dos últimos anos, notadamente em 2005, contra o governo Lula, quando indicava, a partir do seu artigo semanal, no espaço da imprensa liberal conservadora, o alvo do ataque, o ex-presidente se viu numa situação de ostracismo para ele, sob todos os títulos, intolerável. A estratégia tucana para a presidência optou por oculta-lo durante a campanha em virtude de sua elevada rejeição aos olhos do eleitorado. Não é de se estranhar a reação, em se tratando de quem se trata. Envergando um figurino novo, o ex-presidente, a cada momento que se dirige à sociedade, o faz num tom virulento que lembra o mais emblemático líder da direita brasileira no século XX, durante a crise final do varguismo.
Independente de outras considerações, o 24 de agosto de 1954 se constituiu no desfecho de uma tragédia com todos os significados que ela traz consigo. O tiro no peito, na solidão do Catete; a carta testamento; a comoção popular. O “Saio da vida para entrar na História” não foi apenas a frase retórica de um suicida que possuía uma aguda consciência de suas debilidades, de momento, mas também da permanência do seu legado. O gesto último, não isento de cálculo político, revela a determinação de quem decidiu sobreviver historicamente aos seus inimigos. Desencadeou a comoção popular que desejava, adiou por dez anos as pretensões dos que tentavam o golpe contra ele e cumpriu o que prometera na última frase da carta: saiu da vida para entrar na História.
Há, no entanto, diferentes maneiras para realizar essa pretensão. Na trincheira oposta, O Corvo, para lembrar o carimbo definitivo conferido por Samuel Wainer a Carlos Lacerda, viu frustradas suas pretensões golpistas, e o golpe – quando veio – foi desferido por outras mãos. Outros atores tomaram lugar na cena. Mas, cumpre ressaltar aspectos da realidade de então que conferiam a esse personagem, consistência suficiente para participar da cena da tragédia. Ele foi capaz de dar voz – com timbre e virulência inconfundíveis – reconhecida e temida por seus inimigos, aos interesses e ao discurso da direita brasileira que se organizara depois da deposição de Vargas em 45. Agia com eficácia como articulador e líder de uma rede que atava estreitamente a direita civil e a direita militar, com presença expressiva dentro de cada uma das três armas e audiência cativa nas classes médias urbanas, particularmente na capital da República.
Passado meio século, precisamente para servir aos desígnios imperiais dos Estados Unidos, Fernando Henrique, presidente, trabalhou para rebaixar o papel das Forças Armadas ao de capitães do mato, caçadores de traficantes de drogas nas fronteiras. Destruiu, assim, uma tradição herdada dos positivistas de pensar o Brasil, a médio e longo prazo, como nação e com ela boa parte dos laços entre a direita civil e a direita militar. Fernando Henrique, com a arrogância reconhecida e, não raro, ostentada, destruiu as pontes entre o apetite golpista entranhado na cultura das oligarquias brasileiras – as arcaicas e as modernas – e os instrumentos de força necessários para convertê-lo em realidade. Hoje, tucanos e pefelistas, herdeiros bastardos do lacerdismo, não têm a quem recorrer, para golpear os setores populares quando avançavam para ocupar legitima e democraticamente maiores espaços na cena política do país.
O Brasil mudou. As classes trabalhadoras mudaram seu perfil. Ampliaram significativamente seu espaço e influência nos rumos do país. Redefiniram o mapa das disputas ao incluir na agenda os interesses de vastos setores sociais antes excluídos. Construíram instrumentos de luta social e política independentes. Hoje, são capazes de mobilizar forças sociais importantes para fazer frente aos arreganhos golpistas dos que esgrimem uma retórica liberal e sonham com uma democracia sem voto. Há, como sabemos, diferentes formas de entrar para a História. Sua alteza foi convertido pelas circunstâncias em que a História se repete, neste setembro de 2006, num provecto ator de ópera bufa a esbravejar uma retórica apocalíptica em favor de um país que o povo brasileiro insiste em transformar.
Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perrseu Abramo
Há poucos dias, conversando com um militante de larga experiência e estudioso da história política do Brasil, ouvi dele o nome e sobrenome Fernando Henrique de Lacerda. A “Carta aos eleitores do PSDB”, uma espécie de carta-testamento, na definição de Emir Sader, enviada pelo ex-presidente, na última semana, revela a impressionante atualidade da frase com que Marx abre O 18 Brumário de Luiz Bonaparte: “... todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
De referência central e obrigatória para a disputa política que se travou ao longo dos últimos anos, notadamente em 2005, contra o governo Lula, quando indicava, a partir do seu artigo semanal, no espaço da imprensa liberal conservadora, o alvo do ataque, o ex-presidente se viu numa situação de ostracismo para ele, sob todos os títulos, intolerável. A estratégia tucana para a presidência optou por oculta-lo durante a campanha em virtude de sua elevada rejeição aos olhos do eleitorado. Não é de se estranhar a reação, em se tratando de quem se trata. Envergando um figurino novo, o ex-presidente, a cada momento que se dirige à sociedade, o faz num tom virulento que lembra o mais emblemático líder da direita brasileira no século XX, durante a crise final do varguismo.
Independente de outras considerações, o 24 de agosto de 1954 se constituiu no desfecho de uma tragédia com todos os significados que ela traz consigo. O tiro no peito, na solidão do Catete; a carta testamento; a comoção popular. O “Saio da vida para entrar na História” não foi apenas a frase retórica de um suicida que possuía uma aguda consciência de suas debilidades, de momento, mas também da permanência do seu legado. O gesto último, não isento de cálculo político, revela a determinação de quem decidiu sobreviver historicamente aos seus inimigos. Desencadeou a comoção popular que desejava, adiou por dez anos as pretensões dos que tentavam o golpe contra ele e cumpriu o que prometera na última frase da carta: saiu da vida para entrar na História.
Há, no entanto, diferentes maneiras para realizar essa pretensão. Na trincheira oposta, O Corvo, para lembrar o carimbo definitivo conferido por Samuel Wainer a Carlos Lacerda, viu frustradas suas pretensões golpistas, e o golpe – quando veio – foi desferido por outras mãos. Outros atores tomaram lugar na cena. Mas, cumpre ressaltar aspectos da realidade de então que conferiam a esse personagem, consistência suficiente para participar da cena da tragédia. Ele foi capaz de dar voz – com timbre e virulência inconfundíveis – reconhecida e temida por seus inimigos, aos interesses e ao discurso da direita brasileira que se organizara depois da deposição de Vargas em 45. Agia com eficácia como articulador e líder de uma rede que atava estreitamente a direita civil e a direita militar, com presença expressiva dentro de cada uma das três armas e audiência cativa nas classes médias urbanas, particularmente na capital da República.
Passado meio século, precisamente para servir aos desígnios imperiais dos Estados Unidos, Fernando Henrique, presidente, trabalhou para rebaixar o papel das Forças Armadas ao de capitães do mato, caçadores de traficantes de drogas nas fronteiras. Destruiu, assim, uma tradição herdada dos positivistas de pensar o Brasil, a médio e longo prazo, como nação e com ela boa parte dos laços entre a direita civil e a direita militar. Fernando Henrique, com a arrogância reconhecida e, não raro, ostentada, destruiu as pontes entre o apetite golpista entranhado na cultura das oligarquias brasileiras – as arcaicas e as modernas – e os instrumentos de força necessários para convertê-lo em realidade. Hoje, tucanos e pefelistas, herdeiros bastardos do lacerdismo, não têm a quem recorrer, para golpear os setores populares quando avançavam para ocupar legitima e democraticamente maiores espaços na cena política do país.
O Brasil mudou. As classes trabalhadoras mudaram seu perfil. Ampliaram significativamente seu espaço e influência nos rumos do país. Redefiniram o mapa das disputas ao incluir na agenda os interesses de vastos setores sociais antes excluídos. Construíram instrumentos de luta social e política independentes. Hoje, são capazes de mobilizar forças sociais importantes para fazer frente aos arreganhos golpistas dos que esgrimem uma retórica liberal e sonham com uma democracia sem voto. Há, como sabemos, diferentes formas de entrar para a História. Sua alteza foi convertido pelas circunstâncias em que a História se repete, neste setembro de 2006, num provecto ator de ópera bufa a esbravejar uma retórica apocalíptica em favor de um país que o povo brasileiro insiste em transformar.
Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perrseu Abramo
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