13 setembro 2006

Para refletir sobre o Voto Secreto


O voto da má consciência

A sessão de terça-feira na Câmara foi uma empulhação, pelo que os deputados fingiram ter aprovado, e um epitáfio, pelo que realmente obraram, para uma triste Legislatura. Apretexto de acabar com o mau uso do sigilo do voto nos processos de cassação, jogaram flores para a platéia e um abacaxi para o Senado, onde o destrambelho terá de ser consertado, sabe-se lá quando. A Câmara abdicou de uma prerrogativa que não lhe pertence, mas ao eleitor.

Ao abrir mão do voto secreto nos casos estipulados pela Constituição, as senhoras e os senhores deputados tomaram-nos, com a mão do gato, um fundamento básico da democracia como nós a conhecíamos, num tempo em que valia a pena defender o Legislativo, apesar de tudo. Encenou-se uma farsa, com a cumplicidade dos que preferem acreditar no mágico mesmo conhecendo-lhe os truques.

O voto secreto foi o refúgio do Parlamento contra a tirania do rei. Custou luta, sangue
e vidas para ser instituído, preservado e, aqui e alhures, perdido, como bem sabe o presidente Aldo Rebelo. O sigilo democrático preserva o direito de divergir, quando é mais bruta a pressão, venha ela do rei, avassaladora, dos generais, da burocracia partidária, da igreja, da imprensa ou até das ruas.

O sigilo do voto, nos casos constitucionais, não é prebenda de deputado safado, embora safadeza haja dentro e fora da casa. Ele é pressuposto de independência, nos momentos em que um dos poderes da República ? justamente o mais vulnerável, por ser a expressão coletiva de decisões individuadas ? tem de defrontar-se com o Executivo ou, de forma indireta mas crucial, com o Judiciário.

Em três hipóteses o voto de deputados e senadores é secreto. Primeiro, quando confirmam ou derrubam veto presidencial a uma lei emanada do Congresso. Trata-se, por definição, de um momento de confronto entre poderes, e faz-se necessário equilibrá-los. É também secreta a apreciação sobre os futuros embaixadores, por razões de Estado que ficam e pela mesquinharia que passa. E é secretíssimo, por todas as razões, o juízo individual dos parlamentares sobre os magistrados que um dia poderão julgá-los, e a todos nós.

Diferentemente de outros, nosso Legislativo se deu o direito de julgar seus próprios membros, motivo da quarta previsão, esta regimental, de votação secreta. Estou entre os que acham que para bandido há polícia; para réu, juiz e, para deputado, eleitor. Há quem considere mais correto, e até mais eficaz, o julgamento político pelos próprios pares. Respeito a controvérsia.

Abolir o abuso ? alegado, suposto ou notório ? da prerrogativa de dar bola branca ou bola preta aos membros do clube, sigilosamente, foi o pretexto para a temerária votação da Câmara. O "controle transparente" da consciência dos deputados justificou o serviço completo, fazendo-se barba, cabelo e bigode do voto secreto. Jogaram fora a criança, a bacia e o sabonete, mas creio que água suja ficou empoçada no plenário.

Consumada a doce abdicação do voto secreto, pergunta-se: quantos congressistas terão o despojamento cívico de enfrentar abertamente um veto presidencial? Quantos se animarão a expor e fundamentar a suspeição de improbidade, ou de deslealdade à pátria, que acaso paire sobre indicados para representar o país no exterior? Quantos ousarão negar o voto a um futuro ministro do Supremo?

E que juiz ? vejamos por esse lado ? poderá se declarar isento, em causa envolvendo senador ou senadora, tendo sido público o voto da parte na sua indicação? A Câmara mostrou que não faz cerimônia para bulir no direito alheio, mas isso não vai dar em CPI. O Código Penal não capitula demagogia, farisaismo e gabolice.

No mundo dos salvadores da pátria e dos faxineiros autoritários pode haver certezas para tudo, até para justificar a violação de consciências. A Democracia, pobrezinha, tem de conviver com a dúvida, porque nos presume justos e iguais, até prova em contrário, mas nos dá o direito de corrigir os erros, porque não tem ilusões quanto a nossa capacidade de cometê-los.

O placar da votação na Câmara confirma a sabedoria dos antigos e prenuncia o efeito perverso da abdicação irresponsável. Nem o mais santo dos Papas se elegeu pelo assentimento de 383 votos a zero, mas foi com essa unanimidade ovina que se consumou o liberticídio do sigilo.

"Nenhuma unanimidade é sincera", ensinava mestre Ayres da Matta Machado. Expostos todos ao arbítrio de determinada opinião ? que por ser pública não é necessariamente majoritária, menos ainda democrática, mas pretende-se infalível ?, nenhum deputado ou deputada ousou exercer o direito de divergir, negar, remar contra a maré, prestar uma homenagem pública ao discernimento íntimo.

Temo que o próximo passo, por coerência, seja abolir o voto secreto para o cidadão eleitor. Depois que o Tribunal Eleitoral do Rio, no mesmo passo de carneiro, tentou cassar candidato sem julgamento, não será surpresa encontrar na cabine um fiscal da moralidade, pronto a evitar, preventivamente, que o eleitor supostamente corrompido dê seu voto a potenciais sanguessugas.

Vinte anos de convivência com virtudes e pecados do Parlamento acabam fazendo o repórter tomar-se de sentimentos pela casa, feito gente ela fosse. Daí a amargura das palavras, a ousadia do julgamento, o atrevimento sem decoro. A Legislatura que se encerra com gesto pusilânime e inconsequente não vale uma lágrima. Ela sacramentou a perdição da alma entregando o corpo, de que não poderia dispor, ao oportunismo de uns, ao farisaismo de tantos e à má consciência geral. Que descanse secretamente.

Ricardo Amaral, jornalista


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